<$BlogRSDUrl$>
.

HitdaBreakz

8/29/2004

SOUL, PRAIA E NOTAS SOLTAS



Os últimos cartuchos do Verão queimam-se sempre com um pouco de praia e outro tanto de reflexão. E é assim que os últimos capítulos de Sweet Soul Music crescem de intensidade, como se Peter Guralnick tivesse conscientemente estruturado o seu livro como uma boa canção soul, com um arranque doce e temperado e um crescendo imparável depois do primeiro refrão (e agora que penso nisso, se calhar foi mesmo o que ele fez…). Perceber como é que Memphis serviu de laboratório de ensaio para a construção da grande canção negra norte-americana, sabendo-se como Memphis era um enclave tradicional do Sul que deu ao mundo Elvis, por exemplo, tem sido muito revelador para mim. Mais ainda quando, nas entrelinhas ou de forma mais declarada, Guralnick vai deixando formar-se a ideia de que as ligações entre campos tão aparentemente opostos como o country e a soul existiam e eram fortes. Solomon Burke, por exemplo, gravou clássicos da country transformando-os em sucessos impressionantes o suficiente para ser convidado para celebrações de um Ku Klux Klan interessado nos êxitos que se ouviam na rádio (numa época em que a imagem de um cantor ainda não andava agarrada irremediavelmente à sua voz)… As ligações iam, no entanto, para lá de um cancioneiro partilhado e traduziam-se em músicos comuns, compositores do country que escreviam para estrelas soul, editoras como a Hi que começaram por lançar rockabilly antes de descobrirem o R&B. Enfim, Sweet Soul Music é um mundo imenso, maior do que as suas 400 páginas deixavam entender!

Chegado a casa, a sede de soul/R&B era muita. Por isso mesmo peguei num disco que trouxe para casa naquela expedição que me rendeu igualmente o já por aqui referido maxi de Funky Drummer de James Brown. Trata-se de uma compilação da Bell (grande concorrente da Atlantic, no período formativo da Soul nos anos 60) de título Rhythm and Blues Vol. 4.
O disco está um pouco em mau estado, com a lombada rebentada e muitas notas escritas na contracapa, certamente para guiar os DJ’s que utilizavam este disco. O vinil, no entanto, revelou estar em forma depois de uma lavagem. Curiosamente (ou talvez não, para os que acreditam que não existem coincidências) o álbum abre com um espantoso momento de James CarrTo Love Somebody! [audio]– o torturado cantor que serve de “leit motiv” ao capítulo de Sweet Soul Music que hoje li na praia. Este volume 4 de Rhythm and Blues está dividido em duas partes: um Bluesy Side no lado A e um Rhythm Side no lado B. Carr abre o primeiro lado expondo a sua alma em To Love Somebody, uma canção dos irmãos Gibb. A história de James Carr é profundamente trágica: aparentemente, este homem que não sabia ler nem escrever, perdeu-se no seio do seu próprio sucesso, mostrando claramente não estar preparado para um mundo de contratos e negócios. Mas quando a sua voz se se entregava a uma canção conseguia produzir magia. E Guralnick transmite-nos todas essas impressões de forma apaixonante e cativante.

James Carr

Este volume quatro da colecção de R&B da Bell (não há data nesta edição francesa, mas estimo algures entre 66 e 68 como data provável para a sua edição) é bem exemplificativo do estado da soul nesta época. Canções maiores do que a vida com preocupações espirituais no lado Bluesy, temas mexidos e com inclinações mais terrenas no lado Rhythm. E logo aqui se percebe de que ramos saíram a soul e o funk…
No lado Bluesy podem destacar-se a algo psicadélica versão de Reach Out [audio] de Merrilee Rush e o bom reverendo Solomon Burke a entregar-nos a Palavra em Up Tight Good Woman.
Mas é no Rhythm Side que as coisas aquecem: uma investida pelos lados do frenético boogaloo com os The Emperors em My Baby Likes To Boogaloo [audio](floor shaker de primeira dimensão); um rapidíssimo Soul Affection [audio]dos The Interpretations (e se a bateria deste tema aparecesse limpa talvez o drum n’ bass pudesse ter contado com um concorrente à altura do grande Amen Break); e, para mim pelo menos, uma enorme revelação na voz de Sam Hutchins no intenso Dang Me, um tema que ilustra bem a dicotomia entre o lado mais espiritual herdado do gospel [audio] e o lado mais terreno legado pelos blues [audio]. Juntas, essas duas vertentes deram ao mundo a Soul e o Funk. Proveitosa, sem dúvida, a ligação.
Este álbum da Bell levanta uma outra questão intimamente ligada ao diggin’, pelo menos para mim. Um digger, muito mais do que um viciado em discos é um viciado no inesperado, na descoberta. E muitas vezes compram-se discos apenas pela remota possibilidade de acontecer aquele momento mágico em que a agulha toca no vinil e inaugura um mundo novo para os nossos ouvidos. Não acontece sempre e, por vezes, quando acontece não é o mundo de que estamos à espera. Mas de vez em quando acende-se uma luz com uma nova voz, um novo músico ou até um imenso território que não esperávamos vir algum dia a abordar. Como o dia em que uma cópia imaculada de Profondo Rosso dos Goblin apanhada na Feira da Ladra me sintonizou, finalmente, com o rock progressivo. Mas essa é outra história e ficará para outro domingo de praia!