2/11/2008
Jazz Bridges # 9: Byrd's groove
O avanço imparável das décadas tem pelo menos uma inegável virtude: possibilita que se observe em simultâneo as diversas fases da carreira de um artista. Atente-se ao caso específico de Donald Byrd – se por um lado a reorganização do catálogo da Blue Note tem possibilitado a recuperação de pérolas do seu período hard bop/soul jazz, como por exemplo “Off to the races” (1959), “The cat walk” (1961) ou, entre outros, “Free form” (1961), por outro tem permitido que protagonistas da modernidade tão distintos como Madlib, os Glimmers, os Jazzanova ou James Murphy dos LCD Soundsystem descubram em diversos momentos da sua obra pontos de contacto claros com o presente. Curioso, no entanto, é o facto de todos os citados terem resolvido olhar para o Donald Byrd de meados dos anos 70 em diante nas suas incansáveis buscas das raízes da actualidade.
Madlib fez de “Stepping into tomorrow” (título profético para um tema de um LP homónimo de 1975…) a peça central de “Shades of blue”, o álbum que a Blue Note lhe encomendou em 2003; no mesmo ano, os Glimmers – belgas que recentemente remisturaram os portugueses Pop Dell’Arte e que são arautos da nova cena disco sound – incluíram “You and music”, tema do enorme “Places and spaces” de 1975, na compilação “Blue Note’s Sidetracks”; em 2005, os Jazzanova, figuras de proa da etiqueta Compost, também foram convidados pela Blue Note para fazerem a sua própria compilação e não se esqueceram de Donald Byrd – desta vez a escolha recaiu sobre “Think twice”, também do álbum “Stepping into tomorrow”; e já nesta recta final de 2007, James Murphy, cérebro dos LCD Soundsystem cujo álbum “Sound of Silver” vai encabeçar muitas listas de melhores registos do ano, assinou o 36º volume da série FabricLive, uma colecção de compilações promovida por um dos maiores super-clubes da actualidade, e não se esqueceu de incluir “Love has come around”, tema de abertura do LP “Love Byrd” de 1981 (produzido por Isaac Hayes), um trabalho assinado por Donald Byrd & 125th Street, N.Y.C. (assim mesmo) que já havia sido referência habitual nos sets do mítico DJ do Paradise Garage Larry Levan.
Seria possível enumerar mais exemplos de sintonia entre a música de Donald Byrd e as coordenadas que definem o presente das tipologias que apontam ao groove a partir da electrónica, mas julgo que estes são dos mais significativos. O que aqui é paradoxal é que a música que Donald Byrd realizou nos anos 70 – e que à época o establishment do jazz desvalorizou como música comercial: o New Grove Dictionary of Jazz descreve mesmo a sua produção nos seventies como “increasingly tasteless and shallow” – parece ser a que melhor o projectou no futuro. Byrd nasceu em 1932 em Detroit, cidade de fortíssimas tradições R&B (a Motown é um produto de Detroit, por exemplo), e fez carreira assinalável ao lado de gigantes como Max Roach, Sonny Rollins e Art Blakey, entre outros. Após a morte de Clifford Brown, em 1956, muitos olharam para Donald Byrd em busca da mais sólida referência para o trompete hard bop. Mas na década de 60, Donald dedicou-se a uma carreira académica que o levou a ingressar nos corpos docentes de algumas importantes universidades americanas, deixando a sua carreira de jazzman em pausa. Quando regressou aos discos em força, na década de 70, a produção dos fabulosos irmãos Mizell (que trabalharam igualmente com Johnny Hammond e Gary Bartz além dos Jackson 5 e dos Miracles…) sintonizou o talento de Byrd com a vertigem do groove que parecia comandar os destinos de grande parte da música negra da época. Nesse contexto, Donald Byrd assinou uma série de impressionantes álbuns – “Black Byrd” (1973), “Street lady” (1973), “Places and spaces” (1975), “Stepping into tomorrow” (1975), “Caricatures” (1976) – que os guardiões da verdade do jazz não encaixaram da melhor forma, quase sempre negando-lhes qualquer tipo de validade, mesmo à luz das experiências de fusão que então pareciam animar boa parte da produção jazzística mais moderna. Pode-se argumentar que Donald Byrd não deixou de ser um bom trompetista com a chegada dos anos 70 e que a sua música apenas ecoava as experiências ao nível do ritmo que se levavam a cabo nos terrenos do funk e até do disco sound. Mas a prova mais clara de que a música que Byrd criou nesse período merece toda a nossa atenção vem do facto de ter redescoberto pertinência no presente. Gente como Madlib ou James Murphy tem percursos muito diferentes. Que ambos – e outros - citem a obra “menor” de Donald Byrd só pode significar que há que reavaliar o que este trompetista fez no período em que o planeta inteiro parecia estar a dançar.
Donald Byrd (with 125th Street feat. Isaac Hayes) - "Love Has Come Around" - 1981 (áudio)