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HitdaBreakz

11/19/2007

Beastie Boys: o eco da cultura


O título do novo álbum dos Beastie Boys não é, certamente, inocente. “The Mix-up” pode traduzir-se por “A confusão”, palavra que provavelmente identifica bem o que vai nas almas de Adam Yauch, Michael Diamond e Adam Horowitz. Qual é o lugar dos Beastie Boys na cultura que tão cedo abraçaram? Essa é, quase de certeza, a pergunta a que tentam responder com este “The Mix-Up”: sem usar palavras e ainda que, formalmente, o disco soe como uma fuga para o lado, para novos territórios.

Os dois anteriores registos da discografia dos Beastie Boys – “To the 5 boroughs” e “Solid gold hits” – são tentativas claras de construir um lugar no seio de uma cultura que evoluiu para fora de si mesma, esquecendo as raízes e transformando-se num negócio de milhões. O único problema aqui nem é essa transformação, que gerou fluxos de criatividade diferentes e novas e entusiasmantes sonoridades, mas o facto de o nome “hip hop” ecoar hoje de forma muito diferente nas paredes da mesma Nova Iorque que serviu de berço a esta cultura. E a palavra-chave aqui, a essência do hip hop que os Beastie Boys perseguem, é mesmo “cultura”, não no sentido “museológico” ou suplemento-de-semanário do termo, mas antes a cultura que se traduziu nos impulsos originais deste género, nas ideias puramente estéticas que suportaram a sua evolução. Significará isso que os Beastie Boys ficaram perdidos no tempo, agarrados a uma ideia saudosista da música nascida no Bronx? Nem por isso. Ou melhor, sim, certamente, se por acaso pensarem o mesmo de cada uma das bandas que hoje florescem de olhos colocados na primeira metade dos anos 80. A energia de que os Beastie Boys se alimentam não é, certamente, a mesma que faz mover Mims, que é hot porque é fly. Na verdade, essa energia é o segredo que sustenta os melhores momentos da carreira de Yauch, Horowitz e Diamond e advém de um facto incontornável: a relação que os Beasties construíram com a cultura do hip hop foi de observação, muito mais do que de participação. O background familiar – membros da comunidade judaica e burguesa de Nova Iorque – e musical – CBGB kids, com um passado punk hardcore – deste trio nunca lhes permitiu “jogar em casa” e passar da condição de eternos visitantes. Os Beasties sabem isso muito bem, daí que tenham abusado do lado rock da sua personalidade, até para justificar o nome, quando embarcaram numa muito atribulada digressão de promoção a “Licensed to Ill”, já na segunda metade dos anos 80: aparentemente eles não queriam parecer “falsos” ao lado de gente como Public Enemy ou Run DMC. Seja como for, os Beasties estavam lá nos momentos formativos desta cultura, percebendo os rasgos de génio de estetas como o colectivo Bomb Squad e erguendo a partir dessa observação uma praxis muito particular.

Primeiro com os Dust Brothers e depois com Mário Caldato, Jr. os Beastie Boys construíram uma discografia que reflecte a sua condição de “outsiders” de forma inequívoca. Em 1989, quando a tecnologia evoluiu o suficiente para permitir o sampling em larga escala, o hip hop deu um salto de gigante e instituiu novas práticas, já longínquas da old school e dos seus mimetismos de funk e disco e da etapa seguinte em que a caixa de ritmos se posicionou no centro do estúdio (Run DMC, LL Cool J…). Os Beasties, uma vez mais, estavam em cima do acontecimento, mas tiveram que olhar para Los Angeles e para os Dust Brothers de John King e Mike Simpson para encontrarem quem traduzisse a sua visão e a fixasse na obra-prima “Paul’s boutique”. Nova Iorque já tinha Prince Paul e Diamond D, mas os Beasties continuavam a observar o fenómeno da evolução do hip hop das margens, o que lhes permitiu construir discos que funcionam igualmente como comentários a toda a cultura. Daí que a capa de “Check your head” seja uma oblíqua homenagem aos Run DMC e à Adidas (os três Beasties, sentados no passeio, procuram representar o antigo logo da marca desportiva), gesto que repetem uma vez mais na capa da colecção de clássicos “Solid gold hits” onde se fazem representar como um trio de b-boys, com fato de treino Adidas, ghetto blaster e a inevitável esquina grafittada. Essa adopção das marcas visuais é muito menos satírica do que se possa porventura pensar e muito mais homenagem sentida ao tal ponto de origem testemunhado pelos Beasties na primeira metade dos anos 80.
Quando instituíram a Grand Royal em Los Angeles no início dos anos 90, os Beasties procuravam organizar o seu universo de referências. A revista do mesmo nome cobriu todas as bases da particular cosmografia que o trio tinha entretanto erguido: dos “mullets” (um corte de cabelo!) à obsessão de Miami com as baixas frequências, de Bruce Lee a Lee Perry, dos moogs aos filmes policiais dos anos 70… Os Beasties são de Nova Iorque, terra de Warhol e da arte pop, e por isso quando descobriram o sampling não se ficaram obviamente pelos discos de funk tão explorados na época estendendo a ideia de citação a um conjunto de referências visuais. De qualquer maneira, esses discos de onde nasciam os breaks que lhes suportavam as rimas ensinaram-lhes pelo menos uma coisa: Yauch, Horowitz e Diamond podiam usar os seus conhecimentos de instrumentos convencionais (a fundação do baixo, guitarra e bateria) para criarem os seus próprios breaks e duplicarem aqueles momentos de groove que tinham descoberto nas incontáveis horas à procura de samples em artefactos de vinil. E não tardou que os instrumentais criados para “Check your head” e “Ill communication” fossem reunidos num álbum que levou a ideia de sampling ainda mais longe sendo apresentado com o mesmo título e praticamente a mesma capa de um clássico de Jean-Jacques Perrey e Gershon Kingsley, “The in sound from way out”. Por esta altura, o estudo atento das origens do hip hop já tinha levado os Beasties a mergulhar fundo num passado de onde emergiram com música que dispensava as palavras porque possuía uma carga narrativa muito própria, bem evidente para os que interpretaram o hip hop como um mapa para a exploração de outros géneros musicais. “The Mix-Up” é o primeiro disco em que ousam inverter o valor aparentemente acessório destes instrumentais, colocando-os no centro da acção, apresentando-os como um todo pleno de sentido.

Os Beastie Boys chegam agora a um ponto fulcral da sua carreira e “The Mix-up” é a forma encontrada para lidar com isso. Não é um disco de hip hop, nem sequer um disco tão próximo do funk quanto alguns dos instrumentais reunidos em “The in sound from way out”. Musicalmente, é mais do que óbvio que os Beasties estão preocupados em soar como uma banda – além do percussionista Alfredo Ortiz e do cúmplice de longa data Money Mark, não há mais nenhuma adição ao trio nuclear. Michael referiu já publicamente que a música de “The Mix-up” referencia o post-punk de bandas como Slits ou Killing Joke. De facto, em “The Mix-up” há algumas piscadelas de olho ao reggae e as linhas de baixo revelam um calibre demasiado angular para poderem reclamar algum tipo de paternidade mais funky. Mas o que na verdade acontece neste álbum que chega até a ser perturbante é a confusão extrema de referências – do psicadelismo da década de 60 e das bandas sonoras da década de 70 às tais experiências do período post-punk dos anos 80 (e até, imagine-se, algum temperamento kraut). Este álbum não tem um centro óbvio e isso é certamente propositado, talvez porque os Beastie Boys queiram provar a si mesmos que são capazes de funcionar fora do hip hop e da sua mais imediata esfera estética (jazz, funk, soul, etc). Claro que as credenciais punk já tinham pontualmente facilitado desvios à norma na discografia dos Beasties, mas “The Mix-up” é diferente. Não se trata de um disco revolucionário a bordo de uma Enterprise que quer ir onde nunca nenhum trio equipado com guitarra, baixo e bateria alguma vez foi. Nada disso. Não deixa no entanto de ser um gesto de ruptura com o passado dos Beasties porque pela primeira vez equaciona-se a possibilidade de um futuro sem rap. Michael e os dois Adams estão mais velhos e este pode ser o som de uma certa resignação zen, o som de quem imagina o hip hop como o eco de uma época distante e, nesse sentido e paradoxalmente, o som de quem ainda sonha com o futuro.

What’s in a name?

Em 1962, o nome “Rolling Stones” adivinhava-se perfeito para descrever uma banda que, de facto, se revelaria irrequieta durante pelo menos as duas décadas seguintes: os Stones foram perfeitos nómadas de uma época que ajudou a inventar a cultura rock que hoje conhecemos. Mas agora, ao olhar para os cabelos brancos de Charlie Watts e para as marcas óbvias do tempo nas faces de Keith, Mick e Ron, o nome “Rolling Stones” deve ser um peso que já não pode descrever o que, muito mais do que um grupo, é uma autêntica marca que rende milhões e que é regida com o devido calculismo corporativo. Isso é, obviamente, uma consequência inevitável da passagem do tempo. Qualquer street fighting man pode, com o passar dos anos, transformar-se simplesmente em “The Man”. E estes homens que mataram o Verão do Amor em Altamont são hoje avós conformados com um nome esvaziado de sentido, mas pleno de força comercial. O que não significa, como é óbvio, que quando este conselho de administração coordena agendas e se encontra em estúdio não consiga fomentar surpresas, como “A Bigger Bang” deixou bem claro. Mas o nome, sem dúvida, perdeu o simbolismo original e transformou-se apenas num logo.
Algo de similar aconteceu aos Beastie Boys, mas em sentido inverso. Este nome “bestial” também perdeu o norte e a razão de ser quando Mike, Adam e o outro Adam deixaram de insuflar pénis de três metros em palco, de vomitar em cima de jornalistas e de destruir quartos de hotel… Só que, ao contrário dos Stones, os Beasties de 2007 não tentam agarrar o significado do nome, muito pelo contrário: inspirados, talvez, pela conversão ao budismo de Yauch, o grupo parece seguir a preceito o Nobre Caminho Óctuplo preconizado na Quarta Verdade Nobre (google it!). Os Beasties do presente tentam, sobretudo, escapar ao nome e até fazem apelos antes dos seus “Gala events”: “if you can, dress nice”. The Beastie Boys está errado… este grupo deveria chamar-se The Nerdie Boys!


Textos publicados originalmente no # 23 da revista Op.