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HitdaBreakz

7/16/2007

"Give my regards to Popeye!"


Os simpáticos senhores da Flur pediram a uma série de pessoas para partilharem as suas histórias pessoais com DJ Harvey, forma original de assinalar a edição do álbum de Map Of Africa. Eu escrevi o texto que podem encontrar abaixo, que acabou por soar a evocação de uma época especial (meados de 90s) para mim.

Ainda me lembro bem da sensação estranha: 3 ou 4 andares de escadas na Duque de Loulé revelaram uma sala pequena numa casa recentemente arranjada. Paredes e chão novo, tudo a brilhar e no chão uma visão do paraíso: umas dez filas de discos encostados à parede. “São dois mil ao todo,” referiu o senhor. Nunca tinha visto uma coisa assim, em que cada uma das filas no chão era encabeçada por um disco fabuloso – O’Jays, Blackbyrds, James Brown… Assaltou-me uma sensação parecida com a que nos filmes devem ter aqueles tipos que se deparam com sacos cheios de notas – “será que só a da frente é verdadeira e o resto são tiras de jornal cortadas à medida?... – mas, já de joelho no chão, deu para perceber que aquilo não era um filme. Cada um daqueles dois mil discos era fantástico, uma amostra nobre de um tempo em que o funk, o disco e o jazz se libertaram das leis da física subindo até ao espaço, obrigando quem os ouvia a fazer exactamente o mesmo. Acordámos o preço (uma ninharia, na verdade adormecemos o preço…), começámos a descer as escadas com maços de discos e ao fim de uma hora tínhamos tudo carregado.
Desse lote, eu e o Rui Vargas ficámos imediatamente com uns 300 discos cada, privilégios de quem na altura achava que geria um negócio de discos. O resto foi colocado à venda. A nossa loja era fantástica: Lollipop, cravada no coração da Rua do Norte, meados dos anos 90. A maior parte do tempo sentíamos que quem ali entrava não percebia o que queríamos fazer, mas as nossas cópias de orginais de Fela Kuti e Alice Coltrane expostas na parede ao preço para a época ultra-dilatado de 7 ou 8 mil escudos eram sempre as primeiras a desaparecer. Por isso mesmo, o lote que tínhamos acabado de comprar foi exposto com preços dignos do pedigree real que possuía. Prensagens americanas originais, LPs e 12s bem tratados. O senhor que nos tinha vendido a colecção tinha sido DJ na transição da década de 70 para a de 80 e beneficiava do facto de ter um irmão que era comissário de bordo na TAP e que lhe trazia todas as novidades directamente da Grande Maçã. Lembro-me bem de ter fantasiado um pouco e imaginado um tipo com farda da TAP a comprar discos na Downstairs Records ao lado de Larry Levan…
A verdade é que apesar de excelentes, aqueles discos pareciam não interessar a ninguém até ao dia em que um tipo chamado DJ Harvey entrou na Lollipop. Pouco tempo depois de começar a mexer nas caixas, Harvey, que estava na cidade para tocar no Frágil, não escondia o seu entusiasmo com uns bem sonoros “yeahs”. O seu olhar exibia finalmente a luz de quem percebia aquilo que estava a ver. Demorou o tempo que quis, viu todos os vinis da loja, e seleccionou uma pilha generosa de discos, sobretudo maxis. Ouviu vários deles, sinal de que não conhecia tudo, pagou sem pestanejar o preço pedido por cada um dos discos e no final despediu-se com a frase “give my regards to this Popeye guy. He must have been a great DJ!” Todos os maxis do lote comprado na Duque de Loulé exibiam a assinatura Popeye, que devia certamente ser o nome de guerra do senhor na tal época em que tinha sido DJ, entre o final dos 70s e o início dos 80s.
Nessa noite, no Frágil, Harvey tocou alguns dos maxis que tinha acabado de comprar, prova de que era um DJ aberto ao prazer da descoberta, capaz de funcionar fora das apertadas regras que já na altura regiam o som que se ouvia nos clubes. Harvey inventou sempre as suas próprias regras, insistiu sempre em traçar os seus próprios caminhos. Das manhãs pós madrugada no Ministry of Sound até ao Frágil ou ao Hawai, onde hoje reside por causa das ondas. Nunca consegui dar o recado de Harvey ao senhor Popeye, mas adorava poder tê-lo feito.