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HitdaBreakz

1/08/2007

Música de câmara lenta


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A exploração do espaço foi sempre um dado importante na construção do som disco. Nos Estados Unidos, o disco tomou consciência de si mesmo quando DJs como Walter Gibbons e produtores como Tom Moulton foram convidados a interferir directamente na arquitectura do soul e r&b clássicos, criando no processo longos mantras rítmicos despidos de adornos supérfluos para assim maximizarem o efeito do groove na pista de dança. Mas, verdade seja dita, durante grande parte da década de 70 o disco foi pouco mais do que um ângulo de marketing para vender canções firmemente apoiadas na tradição. Tanto assim que, mesmo depois de terem percebido as vantagens estéticas do single de 12”, os executivos das editoras continuavam a não se aventurarem comercialmente para lá das 7”. Os maxis, em quantidade bem mais reduzida, eram um luxo de pequenas editoras e uma teimosia de gabinetes de A&R que queriam impressionar os DJs de espaços como o Gallery ou o Paradise Garage. Terá sido no momento em que o disco começou a perder fulgor comercial que as condições para a evolução se reuniram. Libertos da pressão de executivos presos a ambiciosos objectivos de vendas, produtores e DJs começaram realmente a experimentar, recorrendo à tecnologia como forma de ultrapassar o emagrecimento dos budgets de gravação (que já não permitiam luxos da dimensão de uma Salsoul Orchestra). A nota dominante do disco alterou-se definitivamente nesse momento e as canções passaram a ser menos importantes do que a funcionalidade rítmica dos temas.

Na Europa, houve igualmente alterações. Sem possibilidade de recorrer a estúdios de luxo, como os míticos Sigma Sound de Filadélfia, e quase sempre sem orçamentos compatíveis com grandiosos arranjos de cordas, cedo se percebeu que o caminho europeu do disco teria que ser diferente. E isso levou à “invenção” do som italo, graças aos trabalhos de pesquisa de gente como Alexander Robotnick ou Claudio Simonetti que ajudaram a erguer um som mais directo, angular e moderno que haveria mais tarde de iluminar os primeiros passos do house, em Chicago. Mas o italo era uma criação de laboratório. No terreno, alguns DJs tinham estratégias diferentes. Sobretudo os DJs da mega-discoteca italiana Baia Degli Angeli, pérola da estância Montemare, na costa adriática.

A origem do som cósmico – que hoje é celebrado nos trabalhos de gente como Hans-Peter Lindstrom, que acaba de editar “It’s a Feedelity affair”, e que está retratado em “Elaste”, compilação da responsabilidade de DJ Mooner – está muito bem documentada. No número 16 da revista Waxpoetics, Bill Brewster (co-autor de “Last night a DJ saved my life”) revelou ao mundo a história de Daniele Baldelli, herdeiro da cabine da Baia degli Angeli nos finais de 1976, quando os misteriosos Bob Day e Tom Sison regressaram a Nova Iorque depois de dois anos a orientar os destinos da pista dessa discoteca. Giancarlo Tirotti, o rico proprietário desse superclube do Adriático, queria dar aos seus mais célebres convidados – onde se incluíam nomes como os de Armani ou Fiorucci – uma versão do glamour dos grandes clubes de Nova Iorque e, por isso mesmo, a chegada a Itália de dois DJs à procura de trabalho longe da concorrência violenta da capital mundial do disco foi uma daquelas coincidências de proporções… cósmicas.

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Hoje ninguém parece saber quem eram Bob Day e Tom Sison (há mesmo uma investigação em curso promovida por DJ Mooner para localizar estas duas lendas…), mas a verdade é que foram eles os responsáveis por iniciar Daniele Baldelli e Cláudio Rispoli (aka Dj Mozart) nos pratos da Baia degli Angeli. O clube de Giancarlo Toretti não resistiu muito tempo à aura de glamour decadente que o rodeava – a abundância de drogas acabou por forçar as autoridades a fecharem as portas desse espaço em 1977 – e Daniele Baldelli não demorou a encontrar uma nova discoteca. Enzo Longo, impressionado com o fervor demonstrado pelo público na pista da Baia degli Angeli, levou Baldelli para o Cosmic, perto de Verona. E o resto é História…

Na Itália dos anos 70, as importações de discos dos Estados Unidos não eram comuns o que obrigou Baldelli, depois de Bob e Tom desaparecerem do mapa, a procurar combustível rítmico para os seus sets noutras fontes. Em lojas de Rimini e até Lugano, na Suíça, Baldelli depressa desenvolveu uma reputação por comprar tudo aquilo que os outros DJs evitavam. Baldelli, nas páginas da Waxpoetics: “Eu tocava ‘Spanish dancer’ de Steve Winwood, tocava ‘Foreign affair’ de Mike Oldfield… Não eram pessoas que fizessem música para discoteca. Tocava ‘Was dog a doughnut’ do Cat Stevens, ‘Countdown’ de Lee Ritenour.” E tocava tudo isto em sets misturados na perfeição, recorrendo a processadores de efeitos para sublinhar o carácter espacial de algumas passagens e, sobretudo, alterando, em muitos casos, a rotação original dos discos. Singles de 45 rotações eram tocados a 33, criando um efeito alucinogénico bastante pronunciado. A música sintonizava-se com as drogas pesadas que circulavam na pista. E Baldelli era sagrado como um deus vivo para uma multidão ferozmente fiel e viciada nas cassetes com sets do clube Cosmic que trocavam de mãos por quantias significativas.

Estudiosos do fenómeno cosmic, como Bill Brewster e DJ Mooner, notam com alguma perplexidade que o som popularizado por Baldelli e Mozart em festas com milhares de pessoas se manteve um segredo regional. E isto apesar de turistas alemães e austríacos de visita às estâncias balneares italianas terem começado um lento processo de disseminação desta sonoridade ainda na década de 80. Há até quem compare o caso cosmic com o som baleárico de Ibiza, que também parece estar de regresso – ambos são desenvolvimentos regionais de sonoridades exteriores: o disco norte-americano em Itália, o house mais ácido do Reino Unido nas ilhas baleares.

O primeiro sinal claro do regresso desta sonoridade foi dado por DJ Harvey com o hoje absolutamente mítico CD “Sarcastic disco”. Muitos pensaram que o adjectivo escolhido por Harvey era apropriado, pois classificar como disco uma selecção que incluía Beach Boys, Holger Czukay, Michael Shrieve (músico que participou nalguns álbuns seminais de Klaus Schulze), Isabelle Antena, Claudja Barry, John Forde ou os improváveis Double (exactamente esses em que estão a pensar – os de “The captain of her heart”!) só podia mesmo ser um gesto de um profundo sarcasmo. Nada disso: Sarcastic era o nome da trendy loja japonesa de roupa que tinha encomendado o set a Harvey. Na capa do CD, as faixas e os artistas apareciam cripticamente identificados (Church Boyz em vez de Beach Boys) e isso lançou ainda mais confusão, mas o mundo depressa acordou e percebeu o que estava DJ Harvey a fazer do outro lado do mundo, às voltas com uma noção muito particular de disco.

DJ Harvey foi um dos nomes centrais da geração deep house britânica dos anos 90 que impôs nomes como os Idjut Boys ou Faze Action. Nessa altura, Harvey lançou a Black Cock, editora que colocou no mercado alguns re-edits de legalidade duvidosa e que, juntamente com a Moton (pertença de Rocky e Diesel dos X-Press 2) e a Noid (dos Idjuts), foi pioneira numa tendência que se sente hoje de forma avassaladora – a cultura de re-edits que tem reequacionado as coordenadas de muita música do passado que se afirmou como ritmicamente relevante. No entanto, Harvey trocou a Europa pelos Estados Unidos em finais dos anos 90 e, já nesta década, dedicou-se a construir um circuito alternativo de festas que o levaram a assinar sets muito pouco ortodoxos em locais igualmente incomuns, como restaurantes, galerias de arte e lojas de roupa. Neste momento, Harvey está baseado no Hawai, é co-proprietário de um pequeno hotel e diz-se apostado em fazer renascer o espírito do Loft de David Mancuso com festas programadas cuidadosamente e servidas por um assombroso sistema de som. Entretanto, Harvey tem mantido o mundo em bicos de pés com a expectativa que rodeia a estreia em álbum do seu projecto Map of Africa na ultra cool Whatever We Want, que também edita os Quiet Village de Matt Edwards. Disco de estados alterados e rock psicadelicamente transformado parecem servir de coordenadas à estreia dos Map of Africa a julgar pelos escassos maxis que já se tornaram cobiçadas peças de colecção. Claramente um sinal dos tempos.

Uma das maiores conquistas da cena cósmica parece ser o seu saudável derrube de barreiras entre escolas e tendências que não pareciam ter nada em comum. Em “Sarcastic disco” (recentemente alvo de uma tão oportuna quanto ilegal edição em vinil), Harvey obrigou o “sunshine pop” dos Beach Boys a conviver de perto com o estilismo kraut de Holger Czukay e o sampling pós-industrial dos Severed Heads a dividir espaço com o europop sofisticado dos Double. “Elaste – Slow motion disco: Originals from the cosmic era”, compilado por DJ Mooner para a Compost, segue pelo mesmo caminho e sintoniza a lenta e repetitiva pressão rítmica de Clive Stevens com a estranha e oblíqua visão da pop dos Doctor’s Cat, a sofisticação electro dos Heaven 17 com o prog disco do projecto Logic System de Hideki Matsutake (programador de sintetizadores para gente famosa como Tomita ou os Yellow Magic Orchestra), mais electrónica de progressão lenta no clássico “Basic” dos Memory Control One de Beppe Loda (outro dos nomes centrais da cena cósmica em Itália), kraut puro no enorme e solene “Horizons” dos Eloy e experiências no limite da pop pelos ex-Throbbing Gristle Chris & Cosey. E, ainda assim, a coerência da selecção de Mooner é total. Muito por causa da inteligente sequenciação, que induz uma clara ideia de viagem, mas também porque há uma certa vertigem pela tecnologia que é comum a todos estes temas e que definiu uma época. O que a cena cósmica fez em Itália foi descobrir a frequência em que se processavam todas estas experiências e deixar o receptor ligado em plena pista de dança. Os efeitos ainda hoje se sentem e, como não podia deixar de ser, estão a traduzir-se também em nova música.

“It’s a Feedelity affair” é o primeiro álbum a solo de Lindstrom, depois da sua aventura com Prins Thomas em 2005 que lhe garantiu um generalizado aplauso da crítica. “Another side of Lindstrom”, editado já neste ano na japonesa Outergaze, era “apenas” uma colecção dispersa de maxis. Mas “It’s a Feedelity affair”, apesar de ter igualmente visto todos os seus temas a sair antes em 12”, acrescenta-lhe uma maior ponderação conceptual e um fôlego mais amplo. A visão de Linstrom neste álbum é soberba e mostra que estudou atentamente o passado que é celebrado em compilações como “Sarcastic disco” ou “Elaste”. E isto apesar de jurar a pés juntos que a sua relação com o universo da música de dança é relativamente recente e que passou anos a tocar numa banda de covers dos Deep Purple. Facto ou mito? Pouco interessa. Indesmentível é a capacidade demonstrada por este produtor norueguês de desmontar a clássica dinâmica do disco (há óbvias vénias a clássicos como “I feel love” da dupla Moroder / Summer em “I feel space” e “Il veliero” de Lucio Battisti e Chaplin Band em “Contemporary fix”) para lhe insuflar algumas das características das outras músicas que as pistas cósmicas de Itália também cultivavam: há algo da seriedade kraut no som de Lindstrom e a sua escolha de texturas electrónicas parece saída de um catálogo de sons analógicos da transição dos anos 70 para os anos 80.

Há dez anos era entre Londres e Glasgow que se desenhava a mais interessante cena de dança, com etiquetas como a Nuphonic, a U-Star e a Glasgow Underground a reinventarem o house de vocação mais deep por via de um atento estudo do disco clássico. Hoje, o eixo pulveriza-se um pouco (entre o Japão, Estados Unidos, Inglaterra, Noruega,…), mas volta a assumir-se como válida a estratégia de estudar afincadamente um período específico do passado para poder elevar o presente à dimensão do futuro. E, muito importante, retira-se à música parte do seu mais simplista carácter funcional, desacelerando-lhe o passo e permitindo que estruturas um pouco mais complexas lhe reforcem a identidade. Cósmica, pois claro.

Texto publicado originalmente na revista Op.