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HitdaBreakz

9/12/2006

Soul Jazz: composições de desejo


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Artigo sobre a Soul Jazz publicado no número 18 da revista Op.



Composições de desejo

No ensaio “Flow my blood, the DJ said” impresso na capa do álbum “Songs of a dead dreamer” (1996), Paul D. Miller, também conhecido por DJ Spooky, argumentava que a “montagem é a linguagem invisível do nosso tempo e o DJing a forma de arte que lidera o final do século XX.” A ideia avançada por Miller era depois reforçada por uma citação de Deleuze e Guattari onde se revelava que “as montagens são passionais, elas são composições de desejo.” Já neste ano, num artigo do Guardian, Dorian Lynskey dá conta de uma apaixonada comunidade britânica de coleccionadores de discos e explica que estes “junkies do vinil não se limitam a comprar música – eles salvam-na da obscuridade.” Em ambos os textos adivinha-se uma ideia comum: é possível ler no espaço que separa fisicamente dois discos arrumados numa estante um código significante. Uma colecção, enfim, é muito mais do que a soma das suas partes – faz-se tanto das peças que a integram como das ideias que ligam cada uma delas. Afinal de contas, que leva um coleccionador a eleger um determinado disco para a sua colecção em detrimento de outro?

Numa era de digitalização de todas as emoções, a música parece ter-se soltado definitivamente da sua condição concreta e palpável para se afirmar num universo binário. Tudo parece estar reduzido a zeros e uns e até mesmo os sistemas de som – em tempos extensões da personalidade de cada melómano – parecem ter-se rendido aos globalizantes e uniformizantes tempos modernos: nas caixinhas brancas cabe tudo – Trane, Busta, Mahler, Dylan, Flash, Spears, Wonder e Mercury. No já mencionado artigo do Guardian é citado um estudo conduzido pelo Dr. Adrian North da Universidade de Leicester que concluiu que os compradores de música estão a ficar cada vez mais apáticos: “o fácil acesso à música significa que as pessoas a encaram como um dado adquirido que não requer o compromisso emocional profundo anteriormente associado à apreciação musical.” E é em tempos destes que se tem que valorizar a actividade de uma editora como a Soul Jazz que tem com o passado o exacto “compromisso emocional profundo” que parece estar em vias de extinção.

Edward Brydson, Bruno Verner & Eliete Mejorado, Patrick Coupar, Johan Kugelberg ou Stuart Baker – compiladores de “Studio One lovers”, “The sexual life of the savages”, “New York noise vol. 2”, “Big Apple rappin’” e “The sound of Philadelphia”, respectivamente – são portanto bons exemplos de “montadores passionais”, para parafrasear Deleuze/Guattari, que colocaram ao serviço da Soul Jazz toda a experiência que adquiriram enquanto coleccionadores. Recorrendo à inestimável colaboração destes especialistas, a Soul Jazz tem vindo a construir um impressionante catálogo de compilações, cada uma delas porta de entrada para um mundo fascinante. Dos arquivos míticos de editoras de Kingston como a Studio One de Coxsone Dodd aos históricos legados de cidades como Nova Orleães, Miami, Filadélfia, Nova Iorque, Londres, Chicago ou São Paulo, a Soul Jazz tem sabido desenhar um interessante e único mapa de fluxos musicais que ajudam a compreender melhor as pulsões contemporâneas, sobretudo as que definem a modernidade de vocação mais electrónica e dançante. O reggae, claro, mas também o funk, a soul, o disco, o gospel, os blues, o house, o hip hop, o jazz ou a new wave têm servido de pontos cardeais para uma incessante aventura de descoberta de um passado que parece esconder um sem número de lições pertinentes para quem se dedica a construir o presente e a projectar o futuro.

Atente-se, por exemplo, ao caso de Nova Iorque e ao impacto particular que esta cidade teve no catálogo da londrina Soul Jazz. Certamente inspirados pelo visionário gesto de recuperação dos Liquid Liquid levado a cabo pela Mo’ Wax de James Lavelle (em 1997), os responsáveis pela gestão da Soul Jazz editaram em 2000 o impressionante “A South Bronx story” dando visibilidade a uma tendência que já há algum tempo se fazia sentir pela mão de DJs e coleccionadores – a recuperação da sonoridade fracturante da Nova Iorque de finais dos anos 70 e inícios dos anos 80. O desenho do passado oferecido pela escola crítica de 85/95 sugeria a existência de uma série de realidades estanques: a comunidade gay que glorificava o disco não tinha contactado com a vanguarda no wave que por seu lado não imaginava que no Bronx se estava a construir uma revolução a partir das batidas de funk manipuladas por DJs negros. No entanto, a comunidade de coleccionadores que procurava novos argumentos na demanda eterna da batida perfeita sabia, pela sistematização de informações angariadas em diferentes rodelas de vinil, que algo de muito diferente tinha acontecido nesse período – Bill Laswell dos Material tinha produzido hip hop, James White e Lydia Lunch tocaram em temas disco dos Aural Exciters, Arthur Russell dava concertos na Knitting Factory, privava com Allen Ginsberg, frequentava o Loft e o Gallery e gravava com David Byrne e por aí adiante. Esta foi a época em que os DJs começaram a reclamar o papel de autores (Larry Levan, Nicky Siano), em que o groove se dilatou das 7” para as 12” (pela mão do visionário Tom Moulton, cuja obra a Soul Jazz agora sistematiza), em que as ruas inundaram as galerias de arte e onde todas as barreiras foram derrubadas. Esta é a Nova Iorque que se adivinha nas compilações “New York noise”, “The Gallery”, “Big Apple rappin’” ou nas incursões pela obra de gente como Arthur Russell, Nicky Siano (o lendário DJ do Gallery, onde François Kevorkian iniciou carreira como baterista), Tom Moulton (“inventor” do maxi de 12” e um dos primeiros remisturadores modernos) e, olhando mais para trás no catálogo de referências da Soul Jazz, no álbum que redescobriu para o presente as incontornáveis irmãs Scroggins – “ESG - A South Bronx story”.

A Soul Jazz, que foi e continua a ser igualmente uma loja de discos, sempre teve esta atitude face à história, protagonizando constantes “montagens passionais” desse passado obscuro que os coleccionadores revelam a cada nova preciosidade recuperada para o presente. Tal como aconteceu com Nova Iorque, também o Brasil tem vindo a ser alvo de uma “redescoberta” através de uma série de referências que se estendem até aos primórdios do catálogo da Soul Jazz (Banda Black Rio, Papete, a compilação “Brasil”,...) e que em tempos mais recentes ofereceu olhares sobre a São Paulo angular suja e eléctrica de “The sexual life of the savages” e “As Mercenárias” ou sobre o impressionante legado do tropicalismo de Gil, Caetano, Tom Zé, Os Mutantes e Jorge Ben em “Tropicália”.

Os coleccionadores sabem que há algo que liga Spyder D aos Dinosaur L, as ESG aos Sonic Youth, os Delfonics aos Sweet Inspirations, Delroy Wilson a Grace Jones e Tom Zé a Akira S & As Garotas Que Erraram – fios invisíveis que definem épocas, escolas e sensibilidades e que se entrelaçam nas “composições de desejo” de que falavam Deleuze e Guattari. A Soul Jazz dá visibilidade e sentido a essas ligações, contribuindo para que se possa abordar o passado de cidades como Nova Iorque ou de países como o Brasil ou a Jamaica com um olhar renovado, dando-nos a possibilidade de traçar rotas alternativas para viagens surpreendentes e intensas entre continentes, épocas e escolas. Sejam bem vindos a bordo.



principais edições da Soul Jazz nos últimos meses:


V/A
“Studio One women”
Steve Reid Ensemble
“Spirits walk”
As Mercenárias
“Beginning of the end of the world”
V/A
“Studio One roots 2”
V/A
“Studio One lovers”
V/A
“Microsolutions to megaproblems”
Mark Stewart
“Kiss the future”
V/A
“The sexual life of the savages — Post punk from São Paulo, Brazil”
V/A
“Soul gospel”
Sugar Minott
“Sugar Minott at Studio One”
V/A
“Studio One disco mix”
Burning Spear
“Burning Spear at Studio One / Sounds from the Burning Spear”
V/A
“The sound of Philadelphia”
V/A
“Nicky Siano's The Gallery”
V/A
“Studio One funk”
V/A
“Studio One classics”
todos Soul Jazz / Sabotage, 2005
Tom Moulton
“A Tom Moulton mix”
V/A
“Big Apple rappin’ - The early days of hip hop culture in NYC 1979-1982”
V/A
“Tropicalia”
V/A
“Studio One soul 2”
Sound Dimension
“Jamaica soul shake, vol. 1”
V/A
“New York noise, vol.2”
todos Soul Jazz / Sabotage, 2006