6/10/2006
A problemática Shadow
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No Fórum Sons e em várias outras situações (na apresentação do disco dos Double D Force na Flur, por exemplo) tenho lido/ouvido coisas absolutamente incríveis acerca do contexto específico desta visita de Shadow a Lisboa. Umas surpreendem por chegarem de amigos que temos em elevadíssima conta, outras porque são simplesmente tiros ao lado e demonstram uma total incompreensão da obra de Shadow.
O primeiro erro é a redução da obra de DJ Shadow a dois discos. A discografia de DJ Shadow é bastante mais vasta do que isso e nem sempre se limitou ao formato rei da indústria que é o álbum, daí - talvez - a confusão. Dêm uma vista de olhos aqui e talvez compreendam melhor o que quero dizer. Por outro lado, além da criação directa, a discografia de Josh Davis compreende igualmente títulos que acabam por reflectir outras facetas da sua vertente artística - compilações onde evidencia a sua veia de digger ou dj sets onde aplica os seus conhecimentos de turntablism. Todos são títulos válidos e todos mostram que se há coisa que Shadow não tem feito nestes 15 anos de produção que já leva é estar parado.
Outro equívoco comum que tem ganho espaço nestes últimos tempos é aquele que afirma que Shadow nunca ou quase nunca trabalhou com MCs e que o facto de agora estar a preparar um álbum cheio de vozes só pode indiciar que se está a vender, que está a fraquejar ou qualquer outra coisa igualmente palerma. Também não é verdade: Dj Shadow começou por trabalhar com MCs e o seu primeiro beat foi para um grupo de MCs condenados que levaram o nome de Lifers Group (adivinhem lá pelo nome quais as penas que eles apanharam?). Depois disso, Shadow já trabalhou com diversos dos MCs da sua crew Solesides/Quannum, fez o álbum de Unkle que está recheado de vozes e foi polvilhando a sua própria discografia de algumas abordagens à combinação milenar de rimas e batidas.
Finalmente, o mais sério dos equívocos/acusações que se atribuem a DJ Shadow por causa desta visita está na sua adopção desta nova sonoridade que é o Hyphy - mais electrónica, mais clubby, mais dura, bem próxima do crunk. Na verdade, Shadow sempre deixou claro que também gostava de explorar estas paisagens mais imediatas. O seu beat para "Lady Don't Tek No" da dupla Latyrx (Solesides) já deixava entrever este futuro. E esse disco tem quase 10 anos!... Mais ainda: foi numa das revistas Grand Royal, propriedade dos Beastie Boys, que Shadow proclamou o seu amor pelo Miami Bass, num artigo com perto de uma década. E o Miami Bass, não duvidem, é o antepassado directo de todas estas movimentações underground, do crunk ao baile funk. Por isso mesmo, tentar passar esta ligação de Shadow ao Hyphy por um gesto oportunista e inesperado é simples ignorância e criancice. Claro que há quem não hesite em dizer que se Shadow quer fazer Hyphy isso é porque precisa de dinheiro. Mas penso que terá sido o Rodnog do Fórum Sons a dizer inteligentemente que o homem venderia muito mais se duplicasse os seus caminhos anteriores do que se abraçasse estes novos caminhos. Também tenho poucas dúvidas disso. Finalmente, só os mais distraídos é que não leram em "The Private Press" um desejo de mudança. Shadow fala agora em combinar o sampling com instrumentação real e em fazer temas sem samples e outros sem instrumentos, uns com vozes e outros sem vozes. A mim parece-me muito simplesmente que o homem está a alargar as suas possibilidades, a negar as fórmulas já dominadas e a apresentar-se novos desafios. Não foi isso que Miles fez quando tinha uma fórmula de cool bop vencedora e decidiu electrificar o seu som? Vejam só o que teríamos perdido se Miles tivesse dado ouvido às facções conservadoras. Não sei se ainda há Bitches Brews ou On The Corners no futuro de Shadow, mas confio nele o suficiente para esperar para ouvir.