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HitdaBreakz

4/28/2006

A história do House em livro


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De acordo com aquele adágio popular, um homem só é mesmo homem depois de plantar uma árvore, escrever um livro e fazer um filho. Suponho que a árvore seja para compensar a que teve que se abater para imprimir o tal livro e o filho, obviamente, será para garantir pelo menos um leitor para o que se escreveu. Ou seja, estão todos os ângulos cobertos. Pois bem, árvores já eu plantei há muito (incluindo uma nespereira e uma árvore de pêra abacate - how cool is that?) e uma vez que a minha filha já está crescida o suficiente para ser capaz de ler sem problemas, cá está então o livro. É um livrito de tamanho modesto, mas não deixa de ser um livro. E ainda por cima é sobre música (what else?), mais concretamente sobre a história do House. O livro é disponibilizado agora com o número de Junho da revista Dance Club e custa a módica quantia de 3.95 euros, pelo que não há desculpas para não o comprarem.
Apesar de ser sobre a história do House, este livro desenvolve-se com uma perspectiva suficientemente ampla para se falar de Funk e Disco, pelo que mesmo que achem que o House não vos diz respeito, há por ali informação relevante para - por exemplo - qualquer digger que se preze.
Ora muito bem, e só para aguçar um bocadinho o apetite, fica aqui um excerto do primeiro capítulo. Divirtam-se e não se esqueçam de passar pela banca mais daqui a pouco!

I – Funk – Let’s give the drummer some

Na capa de “Endtroducing”, Dj Shadow agradece a James Brown pela inspiração e chama-lhe “inventor de toda a música moderna.” A frase só parecerá exagerada se por acaso nunca pensaram no padrinho da Soul como o comandante de uma célula geradora de grooves repetitivos, marcadamente 4/4 e encimados por uma voz que frequentemente destilava sexo e era incansável nos apelos ao abandono na pista de dança – “get up, stay on the scene…”. Poderá eventualmente uma descrição destas soar familiar para um fã de house? Peter Shapiro, autor do livro “Turn The Beat Around”, escrevia em 1999 (1) que “de acordo com a sua autoconstruída imagem, o Funk é suposto ser gorduroso, sujo e carregado de cheiro de sexo - noutras palavras, a mais pura expressão da condição terrena do homem. Mas o Funk é tão rígido como qualquer faixa 4/4 de House(…).” O Funk é, evidentemente, um antepassado directo do House.

Geoff Brown explica no seu livro “James Brown” (2) que em 1967 a edição do single “Cold Sweat” trazia algo novo: “a secção rítmica carrega bastante na primeira batida em compassos alternados. Nesse momento, a cada oito batidas, os guitarristas Jimmy Nolen e Alphonso “Country” Kellum, o baixista Bernard Odum e o baterista Clyde Stubblefield “estalam” juntos e depois cada um voa para fazer o que tem a fazer em cima desse “boogaloo” sincopado. Fez-se isso em dois takes nos estúdios da King em Cincinnati. Não era a primeira vez que Brown mudava as regras básicas. Uma nova sensação rítmica, mais jazzy, mas com metais muito minimalistas. O cantar de Brown também era mais livre, estabelecendo um crescendo que resultava num clímax depois dos solos. Isto dá-nos uma boa ideia de como a sua música era criada no estúdio e nos ensaios desta época. Estabeleciam um groove e logo viam onde os levava. ‘Maceo, cmon now, brother, put it where it’s at now,’ era uma das exortações durante o break. ‘Let’s give the drummer some,’ gritou ele memoravelmente antes dos breaks soltos e funky de Stubblefield.” Tendo em conta a afirmação de Shadow que atribui a James Brown a paternidade da música moderna, este retrato da criação do Funk no laboratório que era o estúdio ganha contornos ainda mais significantes. É James Brown quem pede à banda que entregue o protagonismo do tema ao baterista. E Stubblefield não faz um solo, antes reforça a cadência repetitiva, mostrando, à lupa, a base da moderna música de clubes num break que é uma espécie de Big Bang para o actual universo de ritmos.

Tal como o R&B havia representado uma separação do mundo mais espiritual do Gospel, também o Funk haveria de significar o abandono de algumas regras clássicas entretanto erguidas nos terrenos da Soul. As estruturas ficaram mais livres, a nota dominante passou a ser entregue à secção rítmica e a carga sexual acentuou-se não apenas nas vozes dos vocalistas, mas na própria ondulação sincopada sugerida pela música.

Esta época, convém não esquecer, fez-se de conturbadas conquistas por parte da população negra norte-americana. O Movimento dos Direitos Civis estava ao rubro e a Soul e o nascente Funk traduziam nos discos e nos espectáculos as ansiedades de uma sociedade que enfrentava rápidas mudanças, mas com enormes sacrifícios. Quando Martin Luther King, Jr foi assassinado a 4 de Abril de 1968, as ondas de choque atravessaram o país. No dia seguinte, James Brown tinha um concerto marcado para o Boston Garden. Com o país a saque, imerso em incontáveis motins, a televisão pública de Boston decidiu transmitir o concerto, numa tentativa de manter as pessoas em casa. Como explica Peter Guralnick em “Sweet Soul Music” (3), James Brown assinou uma prestação explosiva, embora a sala estivesse vazia, ciente que o poder contido na sua música e na sua mensagem poderiam ajudar a acalmar o país, mantendo as pessoas em casa para seguirem a transmissão do seu concerto. A música, de James Brown, mas não só, tinha obviamente o poder de unir as pessoas. E o Funk, na sua urgência, assumiu-se como a perfeita banda sonora de uma revolução colocando de facto uma nação inteira sob o efeito de um único groove.

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Com o Voting Rights Act aprovado em 1965 e as conquistas alcançadas com a luta simbolicamente despoletada por Rosa Parks, a nação negra tomou consciência de si mesma e ganhou orgulho na sua cor. O caldeirão explosivo de Vietname, contracultura, drogas lisérgicas, Civil Rights Movement, Orgulho Negro, Malcom X e os Black Panthers, James Brown e Motown carregou a comunidade negra para a alvorada dos anos 70 com um estado de espírito muito especial. É inegável que por um lado essa comunidade sofreu autênticos atentados à sua identidade com os assassinatos de Martin Luther King e Malcolm X. Mas o profético “we shall overcome” de Luther King, Jr. encontrou eco na música e a nova década trouxe profundas mudanças. Uma delas manifestou-se nos ecrãs de cinema. Os sempre astutos executivos de Hollywood, em busca permanente de novos mercados, perceberam as alterações no tecido social norte-americano e descobriram um novo público que ansiava por heróis próprios. Essa percepção associada ao teste favorável de “Shaft” – filme cujo sucesso tremendo salvou em 1971 a MGM da falência – deu início a outra revolução: a Blaxploitation, um género que, pela primeira vez, colocava a realidade das “inner cities” no centro da acção. Literalmente.

Filmes como “Shaft”, “Superfly”, “The Mack”, “Cleopatra Jones”, “Foxy Brown” ou “Coffy” e actores como Richard Roundtree, Ron O’Neal, Tamara Dobson e Pam Grier criaram novos modelos para a comunidade negra, habituada que estava a ter em Sidney Poitier o seu único representante nas colinas de Hollywood. O sucesso foi enorme. Em vez de uma versão “lavada” e “white approved” do homem negro para sempre associada ao actor Sidney Poitier, os negros americanos tinham agora heróis (ou anti-heróis) que falavam o calão das ruas, se mostravam exímios nas cenas de acção dentro e fora da cama e alteravam a até então ordem natural das coisas ao conseguirem vencer os maus ou vencer como maus. Com o cinema, o Funk de James Brown assumiu uma dimensão orquestral pela mão de estetas como Isaac Hayes ou Curtis Mayfield.

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