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HitdaBreakz

2/16/2006

Here we go again...


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Caro Manuel Fernandes Vicente

Li hoje o número 42 da coluna “Estas Cidades” que assina no Blitz. Devo confessar-lhe que não sou leitor regular (ou sequer irregular) desta sua página, mas esta semana o assunto interessava-me e por isso mesmo li o texto. Mais uma confissão: uma vez que não o leio regularmente não sabia o que esperar, mas a epígrafe deixou-me algo desconfiado: “O falar hostil e os ritmos crus como combates ritualizados nos guetos.” Abordagem National Geographic? Adiante…

Para que esta minha missiva não se torne muito fechada vou passar a enumerar uma série de pérolas (accionar botão de ironia, por favor) e depois dir-lhe-ei o que penso delas. Aqui vai:

1 - “A par da música e da dança, que tiveram forte repercussão ao longo da década de 1980, o rap evolui paralelamente para as lutas entre os gangs rivais dos guetos de alguns territórios urbanos em gestos quase marciais, a que a gíria fechada e hostil dos seus executantes dá o devido carácter tribal. Identificado o inimigo externo – a sociedade e a classe média norte-americana em geral -, os músicos procuram agora no rap a disciplina para ritualizar o seu sentimento de revolta.”


2 - “Popularizados pelos típicos bonés de basebol, pelos walkman, os patins, as tags, logótipos feitos com spray, elementos sempre presentes na paisagem urbana de Nova Iorque, os rappers pretendem sobretudo atenção.”


3 - “Com ritmos austeros e quase esquálidos, Blackmoon e Grandmaster Flash fazem ouvir os protestos contra as adversidades da sua condição.”


4 - “O rap dos Public Enemy nutre-se das tensões urbanas, da claustrofobia citadina em altura e dos artifícios instrumentais que o quotidiano e o urbanismo das grandes metrópoles impõem.”


5 - “Os sons são também quase sempre o resultado de alguma desadaptação específica. Em rappers como Run DMC, Public Enemy ou Flavor Flav liberta-se o cérebro reptiliano da condição humana e as suas marcas de agressividade, hierarquia e território estão bem presentes no comportamento dos gangs que suportam o movimento.”


6 - “A agressividade latente, que cunhou o movimento rap, procura marcar os seus territórios numa Nova Iorque em que o espaço é particularmente escasso e disputado, e estabelece hierarquias nas tribos urbanas formadas – e nesse sentido as suas características estão em linha recta com o comportamento dos primatas em geral noutros habitats.”


Pausa. Depois desta última frase, preciso de recuperar o fôlego. Mas vamos lá ao resto:

7 - “O rap procura ser uma ameaça para o adversário, supostamente a classe média branca, protestante e consumista, e dirige-lhe nas suas mensagens sinais de óbvia hostilidade.”


Há mais um par de pérolas (espero que ainda não tenha desligado o botão da ironia, por favor…) no texto principal em que as palavras DJ, monólogo, Afrika Bambaataa e scratching surgem entrelaçadas com mais uma carrada de equívocos, mas sugiro passar desde já ao texto incluído na “caixa”:

8 - “Características: Discursos entoados com notório enfado e em tom monocórdico, a evidenciar o que é a própria monotonia da vida nos bairros marginais nova-iorquinos.”


9 - “(o rap) Começou por ser a crónica de rua sobre a enorme barreira social que impede a transposição entre esses dois mundos.”


10 - “O rap (rhythm and poetry) surgiu na linha de continuidade do disco-sound (de que tomou o lado mais marginal e proletário) e da cena jazz-funk, empobrecendo deliberadamente os ornamentos rítmicos para reforçar o conteúdo das mensagens – estas são a razão de ser dos rappers, que procuram dar escape às tensões acumuladas nas suas comunidades e ampliar o eco das injustiças sofridas. Nesta linearidade deliberada, o rap reforça o percurso de regresso às primitivas raízes africanas, utilizando, curiosamente, as mais recentes tecnologias urbanas, como as drum machines, guitarras metálicas, baixos, samplers, percussões e o sound system bem como as fracturantes técnicas de scratching.”


Fico-me por aqui no que a citações diz respeito. E espero que me perdoe tão abundante uso do seu texto, mas é importante contextualizar o que tenho para lhe dizer. A numeração abaixo remete, pois claro, directamente para os excertos numerados acima:

1 – Errado. Qualquer história básica do Hip Hop lhe dirá que esta cultura surgiu precisamente por oposição à vida nos gangs. Afrika Bambaataa, ex-Black Spades, criou a Nação Zulu como uma alternativa positiva, cultural e humanista à violência associada aos gangs. Por isso mesmo, os primeiros anos de existência do Hip Hop pautaram-se por um espírito festivo, de elevação e nunca de combate.

2 – Patins?... Quanto aos rappers pretenderem sobretudo atenção… Que músico sobe a um palco e não a reclama?

3 – Mencionar Blackmoon e Grandmaster Flash na mesma frase, dando a irrónea ideia de que são membros da mesma geração, é como nomear Bruce Springsteen e Little Richard para vincar um qualquer argumento de sintonia geracional.

4 – Nunca tinha percebido que o urbanismo das grandes cidades impõe um certo tipo de “artifícios instrumentais”, seja como for os Public Enemy são de Long Island, um subúrbio desafogado, com praia e vistas largas, onde não se sente “claustrofobia citadina em altura.”

5 – Hum… pois… não percebo nada do que quer dizer com aquela, para utilizar uma expressão sua, “incontinência” escrita…

6 – Em relação a esta frase, sinceramente, não sei… espero não a estar a perceber como julgo que o senhor pretendia que ela fosse percebida. Espero que se tenha perdido ali qualquer coisa, alguma frase ou palavra, que possa ter feito desaparecer algum sentido mais nobre… De facto, desde os tempos do “The Message” que a metáfora da selva é usada para descrever a grande cidade, mas daí a comparar as “tribos urbanas” a “primatas”… Enfim, acho que este ponto não merece grandes comentários.

7 – Sobre este ponto, exemplos teriam sido bem vindos. De qualquer maneira, não me parece que a “classe média branca, protestante e consumista” alguma vez tivesse sido eleita como “adversária” do rap. Este tipo de generalizações é não apenas injusto, mas perigoso. Mas também, frases destas, atiradas para o ar sem nenhum tipo de sustentação em factos, têm o valor que cada um lhe quiser atribuir…

8 – Esse tom “monocórdico” e com “notório enfado” poderia ser usado para descrever o Leonard Cohen, não? Ou o Dylan? Ou o Jorge Palma? Ou o…

9 – Não, não e não. O rap não “começou” por ser crónica de coisa nenhuma a não ser da própria atmosfera festiva que rodeou os primeiros passos da cultura Hip Hop.

10 – A palavra “rap” é um verbo, não uma sigla. A palavra “rap” já existia há décadas antes de o movimento Hip Hop a ter apropriado. Significa, em tradução mais ou menos livre, “tagarelar”. E demorou um bom tempo até o rap ganhar o direito de se associar à palavra “poetry”. Em Portugal também se tentou dar significado à palavra inventando-se a expressão “Ritmo às palavras” para a explicar. Mas “rap” é “rap”. Era escusado abrir aquele parêntesis umas três vezes no seu texto, sobretudo quando explica o rap dos primórdios.
Em relação a este segmento do seu texto considero ainda que escolheu mal o adjectivo – “empobrecendo” – que usa para explicar a relação entre música e mensagem no rap. A base musical do rap “empobreceu” de facto os ornamentos, mas os melódicos, não os rítmicos.
Continuando, devo dizer que a utilização do classificativo “primitivas” antes da expressão “raízes africanas” nos diz mais de si do que das tais raízes e, finalmente, um par de questões de pormenor: as “guitarras metálicas” não são um bom exemplo de “recentes tecnologias urbanas” e também não percebo o que raio faziam as tais guitarras metálicas (refere-se ao Heavy Metal ou mesmo ao revestimento das famosas National Steel?) no rap; as “percussões” também não me parecem ser um bom exemplo de “recentes tecnologias urbanas” até porque já eram utilizadas pelas “primitivas” tribos de África; os baixos, mesmo os eléctricos, também não me parecem cair bem nesta lista de supostos artefactos tecnológicos avançados; e os sound systems, criação dos terceiro-mundistas jamaicanos, existiam desde os anos 50 pelo que também não me parece que aqui sejam bem citados.

E pronto, é tudo. Entenda, por favor, esta minha missiva de forma construtiva.

Bem haja

Rui Miguel Abreu