<$BlogRSDUrl$>
.

HitdaBreakz

1/11/2006

Arthur Russell: quiet genius


Image hosted by Photobucket.com
A leitura (ávida, diga-se de passagem) da Keep On Magazine e, muito particularmente, da belíssima entrevista de Daniel Wang a Steven Hall, colaborador próximo do génio Arthur Russel (com quem teve aliás uma íntima relação amorosa), obrigou-me a reescutar a fabulosa compilação que a Soul Jazz dedicou a este músico. Por isso mesmo, partilho agora aqui um texto assinado na Dance Club aquando da edição dessa compilação, um daqueles discos que deveria ser obrigatório em qualquer casa, em qualquer discografia, iPod ou o que quer que seja. Por ser tão brilhante e tão profundamente... humano.

Arthur Russell

Outro universo

A Nova Iorque da viragem da década de 70 para a de 80 deve ter sido um local mágico. Por um breve período, estabeleceu-se um circuito aberto entre múltiplas realidades cuja consequência imediata foi o derrubar de barreiras entre os mundos do Jazz, da vanguarda, do Punk, do Disco Sound e do nascente Hip Hop. O livre-trânsito de que muitos músicos pareciam usufruir nessa época permitia-lhes circular livremente entre esferas hoje estanques. Só isso explica, como refere Bill Brewster na entrevista que poderão encontrar noutro local desta revista, que Afrika Bambaataa arriscasse tocar discos dos Monkees para um público essencialmente negro nos “ghettos” do Bronx. Ou que alguém como Arthur Russell pudesse, num dia normal, empregar os ensinamentos tântricos de Ali Akbar Khan nas suas jam sessions com o poeta Allen Ginsberg, descer ao Loft de Nick Mancuso para mergulhar nas apertadas malhas do Disco Sound e acabar o dia num estúdio de Times Square com David Byrne – dos Talking Heads – como um dos companheiros de sessão.
“The World Of Arthur Russell”, agora editado pela sempre impressionante Soul Jazz, funciona assim como o compêndio definitivo que o legado do autor de “Go Bang” já merecia e como uma espécie de retrato de uma cidade irremediavelmente contaminada pelas possibilidades que a livre circulação de ideias oferecia. Esta edição, proporciona igualmente um olhar revelador sobre a vida de Arthur Russell – produtor, compositor, poeta, violoncelista – cujo falecimento em 1992, vítima de SIDA, remeteu a sua obra ao quase esquecimento. O facto de o essencial da carreira musical de Russell se encontrar disperso por várias editoras (da West End à Sleeping Bag, passando pela Rough Trade e pela Point Music de Philip Glass) que nunca conseguiram impor números muito significativos dos títulos lançados num mercado que rapidamente perdeu a sua inocência, confinou a sua obra aos restritos círculos de coleccionadores e conhecedores. Por isso mesmo, “The World of Arthur Russell” poderá ser a sua primeira grande oportunidade de reconhecimento, 12 anos depois de ter passado a outro plano astral.
Ao longo dos 11 temas incluídos em “The World of Arthur Russell” vão-se desenvolvendo diversos paradoxos. Por um lado, a música aí contida não faz nenhum esforço para disfarçar a sua urgência e como tanto é, bem mais do que uma consequência, um sintoma da época em que foi criada, tal a valorização dada às ideias e aos desafios que os músicos envolvidos se colocavam a si próprios. Mas, por outro lado, mercê simplesmente do génio investido nos arranjos – quase sempre improvisados a partir de ideias muito básicas, como nos revela Chris Menist nas liner notes – o que se escuta é uma música intemporal, plena de pertinência, hoje como ontem.
Nos temas mais “dançáveis” de Arthur Russell, os andamentos do Disco Sound colam-se à exploração do espaço aprendida nos álbuns de Dub. Esse pendor Dub traduzia-se em amplos reverbs e delays e na gestão das tensões entre os diversos elementos dos arranjos, despindo-se por vezes os temas até às suas fundações rítmicas. E aqui, o envolvimento de DJ’s como Fraçois Kevorkian, Larry Levan e Walter Gibbons há-de ter sido decisivo. Mas para quem criava hinos tão solenes para as pistas de dança (estudados até ao mais ínfimo detalhe por gente como os Faze Action ou, mais recentemente, pelos Moloko – escute-se o fabuloso “Is It All Over My Face” para se perceber o que andou Roisin a ouvir nos últimos anos), há neste álbum momentos de verdadeira perplexidade, quando Arthur troca o abandono da pista pelo recolhimento introspectivo em delicadas peças como “Keeping Up” ou “A Little Lost”. E é nesses momentos que se entende enfim o porquê da admiração que compositores de vanguarda como Philip Glass devotavam ao violoncelista.
Um dos temas-chave desta compilação é o majestoso “In The Light Of The Miracle”: quase 13 minutos e meio de glória orquestral onde o minimalismo explorado por Philip Glass se cruza sem problemas com o pulsar repetitivo do Funk, as percussões “étnicas”, as sinuosas e ascendentes linhas de baixo do Disco, uma secção de metais economicamente jazzy e uma atmosfera global, carregada de efeitos, tipicamente Dub. Mundos heliocêntricos em ebulição pelo groove…
Mas, fundamentalmente, “The World of Arthur Russell” revela uma alma pura, para quem a demanda das ideias foi sempre mais forte do que a tentação da subjugação a uma forma particular de acção. Russell pode ter partido para outro universo, mas o eco da sua música continua a abalar-nos por dentro.