12/20/2005
Kanye West: Homem do Ano
Sem dúvida, 2005 foi o ano de Kanye West. Como o ano está a terminar, recuperam-se aqui agora dois textos publicados há uns meses em dois locais diferentes (a revista Op e o jornal Blitz) sobre este fenómeno que tantas coisas boas tem oferecido ao universo Hip Hop em tempos mais recentes.
Ser humano
A história de sucesso de Kanye West é, a todos os níveis, absolutamente espantosa. Há, definitivamente, algo de diferente em Kanye, na sua postura, no seu som, na sua planificação de carreira – sim, porque há certamente uma estratégia por trás de todos os seus gestos públicos: “Bush don’t care about black people”, a bombástica frase que Kanye proferiu num espectáculo de angariação de fundos para as vítimas do Katrina tem “t-shirt appeal” e soa muito mais a slogan de combate do que a desabafo imponderado. É que ao contrário de Puffy (“party, party, party”), 50 Cent (“gangsta, gangsta, gangsta”), Eminem (“shock, shock, shock”) ou até do seu actual patrão Jay-Z (“power, power, power”), é impossível reduzir Kanye a um retrato unidimensional, é impossível metê-lo numa única gaveta e resolver o enigma que representa com uma única chave. Mas uma mochila nas costas e um pendente de Jesus Cristo cravejado de diamantes fazem perfeito sentido se quem os usa tem um primeiro álbum de título “The college dropout”. Um “nerd” com “street cred”, um beto rebelde? Onde é que já vimos um retrato assim?
Kanye deu primeiro nas vistas quando ofereceu a Jay-Z alguns dos melhores beats da obra-prima “The blueprint” (do ácido de “Takeover” ao glamouroso “Never change” passando pelo hino “I.Z.Z.O. (H.O.V.A.)”). E imediatamente levantou-se um coro de elogios, creditando Kanye com a proeza de ter feito regressar sozinho os loops e os samples ao centro de operações do hip hop (que, muito por influência do peso de Dr Dre, preferia na época contornar direitos de autor retirando de sintetizadores e caixas de ritmos o sumo necessário para construir beats capazes de subir nas tabelas de vendas). Mas, na verdade, o Hip Hop nunca tinha deixado de samplar e há uma longa história de produtores que até o fazem com muito mais classe e propriedade – de Pete Rock, Lord Finesse e Diamond D até DJ Premier, Just Blaze e 9th Wonder. Será, então, que o elevado estatuto de Kanye se fica a dever à sua (aparentemente) singular capacidade de aliar skills de produção a algumas qualidades enquanto rapper e liricista? Também não me parece, porque o próprio Pete Rock, o já citado Dr Dre, Pharrell e, no underground, Madlib ou Rza também fizeram nome à custa de provarem as suas capacidades tanto no sampler como no microfone. Sasha Frére-Jones oferece uma explicação num recente artigo para o The New Yorker e avança que “há poucos artistas pop tão descontentes e tão exageradamente orgulhosos como Kanye West”. Talvez a resposta para este enigma se encontre no seguimento dessa ideia.
Às personalidades “over the top” de estrelas como Puffy, 50, Eminem ou Jay-Z, Kanye contrapõe uma dimensão declaradamente… humana. Feita de contradições, de golpes de rins, de inversões de marcha. Afinal de contas, o homem que lançou uma linha de jóias inspiradas no seu pendente de diamantes com a cabeça de Cristo é o mesmo homem que avançou para “Late registration” com um single, “Diamonds from Sierra Leone”, que questiona o sofrimento associado à exploração de pedras preciosas no continente africano. Afinal, o homem que afirmou sem pudores ser um “college dropout” inclui em “Hey mama”, uma sincera homenagem à sua mãe que é uma professora de inglês já reformada, a promessa de “voltar à escola”. Volto a perguntar: onde é que já vimos algo de semelhante?
Antes da edição de “Late registration”, Kanye preparou caminho com o apadrinhamento do veterano Common, a quem produziu a quase totalidade de “Be”. O álbum é espantoso e para muitos representa um regresso à essência depois dos desvarios mais “experimentais” de “Electric circus” (que é excelente, digam o que disserem os fãs de “Ressurrection” ou “Like water for chocolate”). Mas Kanye associa-se a um homem tido como um rapper consciente, como uma referência do underground que se faz fotografar na contracapa de “Be” sob um retrato de Malcolm X e que tem os Last Poets, históricos activistas do Civil Rights Movement, no grande “The corner”, um dos melhores momentos do álbum. Em “Late registration”, Kanye também não hesita em recorrer a Gil Scott-Heron, precisamente na faixa onde reencontra Common, “My way home”, demonstrando dessa maneira que conhece quem levantou grandes questões ao longo da história da música negra. E tudo isto faz sentido, mesmo se na faixa seguinte, “Crack music”, se cede espaço a The Game…
Em comum, “Be” e “Late registration”, dois dos momentos mais altos deste ano, sem a menor sombra de dúvida, possuem a aguçada consciência da história da música negra, pela via dos samples usados, claro, mas igualmente por causa das atmosferas que sugerem e das questões que levantam. Kanye pode não possuir a capacidade de descobrir os samples mais obscuros e pode até ter feito nome à custa de um truque de produção que nem sequer é da sua autoria (os hooks de soul vocal acelerados são uma receita já antes usada por gente como Rza ou Alchemist, por exemplo), mas tem um bom gosto a toda a prova e sabe como retirar de um loop de uma secção de cordas ou de meia dúzia de notas executadas ao piano o impulso para construir um lamento ou um épico. Nele, um loop nunca é meramente funcional e não existe como simples marcação rítmica do discurso do MC. As texturas usadas por Kanye – tanto nos seus álbuns, como no trabalho que realizou para Common – têm sempre espessura emocional. Aliás, por alturas da edição de “The college dropout”, Kanye prometeu converter os beats que marcaram a sua estreia numa sinfonia de instrumentais, exactamente por acreditar que a música carrega já uma dimensão narrativa bastante forte. E talvez se deva entender assim a sua associação a Jon Brion, homem habituado a carregar a música com emoções, por via do seu trabalho em bandas sonoras como “Magnolia” ou em álbuns de singer-songwriters como Fiona Apple.
Na pop, como na natureza, a vida é feita de ciclos, de avanços e recuos, de momentos de ruptura e é provavelmente isso que Kanye representa: uma ruptura com um mundo ultra-estilizado, feito de máscaras e calculismo. E, no entanto, é precisamente com uma máscara que Kanye se apresenta ao mundo, como se o único lugar que pudesse ocupar numa metafórica vida universitária fosse a de mascote, escondida do mundo com uma máscara que não revela quem por trás dela se esconde. Mas Kanye é de facto uma mascote: da Roc-a-fella e de incontáveis outros personagens do mundo do hip hop. O que não o impede de afirmar em “Gone” que o que muitos desses rappers poderiam fazer era “pedir-lhe um emprego”. Então? Que história semelhante, feita de contradições, de máscaras, de passos desconexos, de sofrimento, de paixão e de génio é que conhecemos no universo da música negra? Muitas, é certo, mas a de Marvin Gaye tem demasiadas semelhanças – homem dividido entre o corpo e o espírito, com uma relação nunca resolvida com o seu pai, que toda a vida tentou satisfazer, com um ego tão gigante quanto a sua obra, com uma voz tão singular quanto representativa da sua geração. Kanye é assim e talvez seja esse o factor x que o eleva acima da multidão. Essa capacidade de se expor, frágil e desorientado, perante o mundo. Como explica Sasha Frére-Jones, no já citado artigo do The New Yorker, “se West é o primeiro a frisar o quão grande ele é, ele é igualmente rápido a explicar todas as suas inseguranças.” E é essa a razão do seu imenso sucesso: por trás da máscara do ursinho, há um ser humano. Pleno de incertezas e cheio de grande música. Signo? Gémeos, obviamente…
Soul Man
Kanye West criou um som de marca e ergueu de novo o sampling até ao topo das tabelas de vendas. Dêm-lhe uma bateria, um sample de voz acelerado e um pouco de Soul e ele oferece-vos o mundo!
Com uma lista de clientes impressionante – que vai de John Legend e Janet Jackson a Common, Mobb Deep, Alicia Keys e The Game – Kanye West ocupa neste momento o lugar deixado vago pelos Neptunes e que estes já haviam preenchido depois de esgotado o toque de midas de Timbaland. À abordagem digital de Timba e ao funk sintético de Pharrell e Chad, Kanye West contrapôs uma espécie de regresso às origens, liderando uma nova ordem que volta a reconhecer validade ao sampling dentro do Hip Hop.
Pegar em excertos de discos, fazê-los rodar em loop ou cortá-los em pedaços e reordená-los através do sampler foi sempre um dos métodos favoritos do Hip Hop para a construção da sua vertente musical. Como seria de esperar, à medida que as vendas de discos de Hip Hop se foram tornando mais sérias também os processos por uso indevido de samples se foram agravando até à imposição de uma verdadeira indústria paralela de empresas especializadas em “sample clearing”. Claro que, numa economia de mercado, isso significa uma relação directa entre as vendas de um disco e a conta a pagar aos criadores originais dos temas samplados. Por isso mesmo, o surgimento de uma geração de produtores, liderada por gente como Swizz Beats ou Trackmasters, capazes de oferecer uma alternativa mais compensadora em termos económicos foi inevitável. Dr Dre tinha apontado o rumo com o seu G-Funk apoiado em instrumentação real e esta escola de produtores pôde assim disponibilizar aos seus clientes beats da idade digital, carregados de bounce e livres de dores de cabeça que pudessem levar editoras e artistas a tribunal. Nesta época – finais dos anos noventa e inícios da presente década – o sampling passou ao underground e uma nova escola emergiu, forte e complexa: a dos beat diggers, produtores que continuam a recorrer ao sampling, mas que desenvolveram técnicas que lhes permitem aceder a edições mais obscuras e assim contornar a atenção predadora de advogados apostados em condimentar os seus rendimentos com um par de processos milionários por uso indevido da música dos seus clientes.
Kanye e o regresso do sampling
Kanye veio contrariar esta tendência e provar que beats samplados também podiam fazer estremecer os sound systems dos clubes, sobretudo depois do seu trabalho em “The Blueprint”, obra prima de Jay-Z. Nesse álbum assinou a produção de temas como “Takeover”, “Never Change” ou “I.z.z.o”, usando predominantemente samples de discos de Soul de Bobby “Blue” Bland, Persuaders ou Jackson 5. No entanto, Kanye já confessou não ser fundamentalista em nada e por isso mesmo nem os Doors foram poupados, tendo um loop de “Five to one” servido de combustível para o ataque de Jay-Z a Nas protagonizado em “Takeover”.
O sucesso de “The Blueprint” (disco editado no dia da queda das Torres Gémeas em Nova Iorque) foi impressionante e provou a compatibilidade do sampling com o topo das tabelas de vendas. Kanye, claro, não olhou para trás e produziu pesos pesados como Cam’ron, Scarface, Nas, Talib Kweli e, já em 2003, de novo Jay-Z no polémico “The Black Album” (o disco que Danger Mouse usou para construir “The Grey Album”, colando a voz de Jay-Z à música dos Beatles). Percebendo que tinha ali uma fórmula eficaz, West só muito raramente procurava loops em círculos exteriores à Soul clássica. Aconteceu, por exemplo, com “Come Home With me” de Cam’ron, tema em que recorreu à glória dos anos 60 Buffy Sainte-Marie, ou nos dois temas que assinou em “The Black Album” – “Encore” e “Lucifer” – para os quais samplou material de John Holt e Max Romeo, ambos lendas da música Jamaicana.
De qualquer maneira, não foi apenas por vasculhar insistentemente na memória da Soul que Kanye West angariou reconhecimento. Em “The College Dropout” muitos dos samples de Soul utilizados (que vão de Dinah Washington a Chaka Khan) surgem acelerados, conferindo aos temas uma atmosfera onírica que tudo tem a ver com o universo para que remetem as letras de Kanye. Não se pode atribuir ao autor de “Late Registration” a autoria dessa técnica, mas é ele, certamente, o responsável por a popularizar. E caso pensem que por trás do “truque” da aceleração de samples há um apelo velado à memória colectiva de uma geração (é uma leitura possível, claro), Kanye West faz questão de explicar (à Remix Magazine) que a verdadeira razão é muito mais prosaica: “A maior parte dos temas clássicos de Soul são demasiado lentos para se rimar em cima, por isso eu acelero os samples, até se encaixarem nas batidas que programo.” Simples. E directo.
A história da música negra
A abordagem de Kanye ao acto de criação também lhe permite valorizar muito mais o resultado final do que os métodos utilizados para o alcançar. É comum verem-se referências de outros produtores – provavelmente habituados a lidarem com orçamentos mais curtos e por isso experientes em contornar os processos de direitos de autor com recurso a discos obscuros e de circulação extremamente limitada – a códigos e éticas nos domínios do sampling. Kanye não liga a nada disso e não se importa de revelar à actual bíblia da produção Hip Hop, a revista Scratch, que não atribui importância às edições que sampla, revelando que procura muitas vezes na megastore mais próxima edições comuns para alimentar a sua MPC 2000 e o seu ASR 10 (dois samplers famosos, da Akai e da Ensoniq, respectivamente). De novo na Remix Magazine: “Não ligo nenhuma ao equipamento ou à técnica. O que interessa é como o tema soa. E se tiver que ser famoso por alguma coisa é por conseguir retirar o máximo de resultados do mínimo de recursos.”
Seja onde for que Kanye compre os seus discos, não há no entanto como negar o seu extremo bom gosto na escolha de samples: Luther Vandross e Marvin Gaye, Gil Scott-Heron e Aretha Franklin, The Staple Singers e The Chi-Lites, Ray Charles e Etta James… Ler os créditos de samples nas fichas técnicas de “The College Dropout” e “Late Registration” é como consultar um bem recheado compêndio de história da música negra dos últimos 40 anos. Talvez Kanye aspire ao mesmo estatuto clássico dos temas que sampla nos seus álbuns. E talvez até já o tenha atingido.