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HitdaBreakz

7/29/2005

The Wonder of Stevie


Stevie Wonder é um monumento vivo, um herói da música negra com quatro recheadas décadas de carreira. No momento em que se prepara para editar A Time to Love, o seu primeiro registo de originais em dez anos, lançamos um olhar sobre a sua prodigiosa carreira.


Stevie Wonder, fazendo ainda, provavelmente, uso da liberdade artística conquistada a muito custo no início dos anos 70, está a demorar o tempo que acha necessário para entregar A Time To Love à sua editora de sempre, a Motown.
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Porque ainda precisa de dar os últimos retoques a algumas canções ou simplesmente porque espera o timing certo para o fazer. E enquanto isso não acontece, o single So What The Fuss assinala o seu regresso a uma sonoridade funk mais angular, contando para tal com a ajuda de Prince no riff de guitarra que transporta todo o tema. Talvez haja coisas mais importantes para Stevie do que respeitar os calendários concebidos pelo seu departamento de marketing – como por exemplo promover a versão narrada do vídeo de So What The Fuss, chamando assim a atenção de estações de televisão de todo mundo para aquelas franjas da sua audiência com problemas ao nível da visão. Curiosamente, a versão para cegos do seu novo clip é narrada por Busta Rhymes, de quem Stevie é um confesso admirador. E na remistura do single podemos ouvir Q-Tip, dos A Tribe Called Quest. Prova de que o regresso de Stevie Wonder está a ser amparado por uma nova geração de músicos ou, sobretudo, prova de que a sua obra continua tão relevante no panorama geral da música negra como antes.

Em 2003 e 2004, a Harmless, em colaboração com os DJs Spinna e Bobbito, editou dois volumes de uma compilação a que chamou The Wonder Of Stevie. Essas duas colecções de canções de Stevie Wonder revistas por gente tão diferente como Minnie Ripperton, B. B. King, Quincy Jones, José Feliciano, as Supremes ou Ramsey Lewis são extremamente importantes por deixarem claro que a obra do autor de Innervisions funcionou como uma espécie de língua franca que durante muito tempo uniu os universos da soul, do funk, do jazz e da pop. Porque essa é a grande conquista histórica de Stevie Wonder – a sua imensa capacidade de escrever brilhantes pedaços de história pela força da conjugação de palavras, melodias e ritmos que parecem ter sempre encontrado forma de aceder directamente a um subconsciente colectivo, traduzindo na perfeição sonhos, ansiedades, preocupações e formas de sentir com que toda a gente se poderia relacionar.
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Por tudo isso, Stevie Wonder é um herói, um ícone da América negra que, aos 55 anos possui já mais de quatro décadas de carreira gravada. Stevie cresceu com a própria história da música negra. Ou talvez tenha sido a música negra que cresceu com ele.

O início

Steveland Hardaway Judkins (Stevie adoptaria o apelido Morris mais tarde, quando a sua mãe voltou a casar) nasceu prematuramente a 13 de Maio de 1950 e terá sido o excesso de oxigénio recebido na incubadora o factor responsável pela sua cegueira. Aos quatro anos a sua família mudou-se para Detroit, para escapar à pobreza extrema de Saginaw, a cidade onde nasceu. Detroit era a capital nacional da indústria automóvel, por isso haveria mais empregos por lá. Mas Detroit – a “motor town” – era igualmente a cidade da mítica editora de Berry Gordy, a Motown, e esse factor haveria de se revelar decisivo.

Todos os relatos indicam que a infância de Stevie foi feliz, talvez por cedo ter encontrado na música um contraponto à sua deficiência. Como tantas outras crianças da época, Stevie contava apenas 4 anos quando entrou nessas verdadeiras fábricas de cantores soul que eram os coros de igreja. Paralelamente, foi aprendendo a tocar vários instrumentos, quase sozinho: a bateria porque tudo servia para marcar um ritmo, o piano porque a vizinha tinha um (que ofereceu a Stevie quando se mudou para outra cidade…), a harmónica porque ganhou uma de presente num Natal qualquer. A verdade é que Stevie não conseguia impedir a música de escorrer de dentro de si e foi na sua vizinhança que começou a fazer-se notar, cantando nas esquinas para amigos e vizinhos. Um desses amigos ficou impressionado o suficiente para convencer o seu irmão mais velho a deslocar-se até ao bairro para ouvir o pequeno Stevie cantar. O irmão mais velho chamava-se Ronnie White e cantava com os Miracles de Smokey Robinson. O resto, como se costuma dizer, é história. Não demorou muito para White levar o pequeno Steveland até aos estúdios da Motown, Hitsville USA. E foi um excitadíssimo Mickey Stevenson, um dos grandes produtores da casa, que entrou de rompante no gabinete de Berry Gordy para o convencer a descer até ao estúdio para ouvir uma pequena maravilha.

Conta o patrão da Motown na sua autobiografia: “Ele tinha apenas 11 anos, mas as pessoas já comentavam que ele poderia ser o próximo Ray Charles. Ele estava a cantar, a tocar bongos e a soprar numa harmónica. A voz não me impressionou por aí além, mas a sua capacidade na harmónica sim. Havia nele algo de contagiante.”
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Berry Gordy constatou o óbvio e, tratando-se de um estatuto homem de negócios que haveria de construir um império, não demorou muito a oferecer um contrato ao jovem Stevie que, pela forma como impressionava toda a gente, ganhou logo ali o seu apelido artístico – Wonder!

Nesta época, a Motown funcionava com uma bem oleada linha de montagem, bem à maneira das fábricas da Ford que marcavam a paisagem de Detroit. Um artista – fosse ele quem fosse – estava sempre no final da linha. Antes dele havia os letristas e compositores, os produtores, os arranjadores e os músicos de estúdio. A debitar constantemente o que, esperava-se, seria o próximo grande êxito. Stevie, no entanto, não acertou logo à primeira e foi preciso chegar ao quarto single, o histórico Fingertips Pt 1 & 2, lançado no Verão de 1963, para atingir o topo das tabelas de vendas. Foi em 1963 que Stevie se tornou um fenómeno nacional, contribuindo decisivamente para o alargamento do património da Motown. Quarenta e dois anos depois, nada mudou.

O mito

É com o clássico Fingertips, uma jam session muito directa conduzida pela harmónica, que abre a colecção de quatro CDs At The Close of the Century, a última edição relevante de Stevie Wonder, datada de 1999 (em 2002 surgiu ainda The Definitive Collection que mais não é do que uma versão condensada dessa caixa retrospectiva). E é preciso recuarmos até 1995 para encontrarmos o seu último registo de originais, Conversation Peace, que, juntamente com a belíssima banda sonora de Jungle Fever de Spike Lee, de 1991, é o seu único trabalho editado na década passada.

Os anos 80 também não foram muito mais prolíficos para Stevie: além da banda sonora de The Woman in Red (o álbum do terrível I Just Called to Say I Love You, tema que atormentou a adolescência de muito boa gente), com data de 1984, só os discos In Square Circle (1985) e Characters (de 1987) trouxeram material novo, muitas vezes perfeitamente descartável, mas com alguns rasgos num par de canções. Hotter Than July, apesar da data de edição de 1980, é de facto o último álbum de Stevie gravado ainda nos anos 70, sem dúvida a melhor época da sua carreira.

Quando completou 21 anos, Stevie decidiu anular todos os contratos que tinha assinado enquanto menor. Era 1971 e o mundo estava a mudar, com agitação política, guerras e convulsões sociais de ordem diversa. A vida de Stevie Wonder também havia mudado: tinha-se casado com Syreeta Wright, uma ex-secretária da Motown que tinha enveredado pela carreira de cantora (e para quem Stevie produziu um par de belíssimos discos; Syreeta morreu no ano passado), mas sentia que nenhuma das mudanças, interiores ou exteriores, se estava a reflectir na sua música. Decidiu então fechar-se durante um ano num estúdio em Nova Iorque e produzir música, livre das pressões das editoras.
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Juntamente com Stevie, estavam dois brilhantes engenheiros – Malcolm Cecil e Robert Margouleff, ambos ligados aos Tonto’s Expanding Head Band, um pioneiro projecto que cruzava electrónica experimental e algumas das pistas do rock psicadélico – que o orientaram na sua iniciática abordagem ao sintetizador Moog. Tal como Marvin Gaye, quando colocou uma pedra na engrenagem da Motown e exigiu a liberdade que se traduziria em What’s Going On, também Stevie Wonder estava prestes a dar um passo de gigante, afastando definitivamente a imagem de “Little” Stevie a que ainda era associado, para se afirmar definitivamente como um adulto e um artista que entendia a música como expressão de algo interior.

Algum tempo depois, já com o seu primeiro álbum “adulto” gravado, Stevie acedeu a finalmente estudar as diversas propostas de editoras que tinha em cima da mesa optando no final por assinar contrato com a… Motown! No fundo, a pausa de Stevie serviu apenas para encontrar o seu caminho artístico e obrigar Berry Gordy a funcionar segundo a sua vontade. Stevie voltou à Motown, mas com total controlo artístico da sua carreira.

A música

Esta época revelou-se uma das mais prodigiosas na música popular e Stevie cedo se assumiu como um dos seus faróis. Music of My Mind foi o primeiro álbum lançado na nova fase da sua carreira, em 1972. E o funk estilizado que haveria de explorar em álbuns posteriores, servido pelos sintetizadores que tinha começado a explorar, já marca aqui presença em temas como Keep on Running. Seguiu-se, ainda no mesmo ano, Talking Book (de onde saíram os grandes Superstition e You Are the Sunshine of My Life), um álbum cujo título se referia a um computador entretanto surgido no mercado que “lia” livros para cegos. Nas notas da caixa At The Close of a Century, David Ritz, o biógrafo de gente como Marvin Gaye ou Aretha Franklin, conta que Stevie visitou Ray Charles no estúdio nesta época para lhe oferecer um desses computadores. Ray estava intratável, como sempre, mas passado um pouco Stevie já o tinha “amansado” e ambos passaram a tarde “a discutir as subtilezas dos sintetizadores”.

A fase seguinte da carreira de Stevie Wonder é absolutamente brilhante e geradora, ao longo dos anos, de inúmeras teses e discussões teóricas. Entre 73 e 76, Stevie editou três obras primas absolutas: Innervisions, Fulfillingness’ First Finale e Songs in the Key of Life, um tríptico impressionante de onde sairam canções como Higher Ground, Living for The City, Boogie On Reggae Woman, Pastime Paradise ou Isn’t She Lovely. Como Sun Ra, Herbie Hancock, Sly Stone ou os Parliament, Stevie soube usar a tecnologia então disponível para construir uma nova experiência musical negra, servindo-se de sintetizadores não como geradores de sons exóticos, mas como tradutores da pulsão moderna e urbana, um meio de transporte da vibração original da soul para o futuro.
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Stevie ajudou a transformar a paisagem aural da música negra dos anos 70, mas nunca esqueceu o poder básico de uma canção: a sua capacidade de mover as pessoas, de as fazer pensar, chorar ou rir, de as apaixonar. E o seu cancioneiro permanece como um monumento à imaginação e à experiência negra norte-americana.

Como em 1971, Stevie parece ter percebido que é novamente tempo de mudança. Como em 1971, o mundo atravessa de novo períodos de convulsão. É por isso tempo de amar. Talvez seja por isso, novamente, tempo de Stevie Wonder. So, what the fuss…?

Este texto foi originalmente publicado no Blitz há um par de meses.