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HitdaBreakz

7/23/2005

CARTA ABERTA A JORGE MANUEL LOPES


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Caro Jorge Manuel Lopes

Espero que não te importes que me dirija a ti assim, desta forma aberta, coloquial e pública. Sempre defendi que o espaço da crítica deve ser permeável ao debate e ao confronto de ideias e isso – na minha cabeça, pelo menos – é a única justificação que tenho para te dedicar os próximos parágrafos. Acredito que as verdades absolutas pertencem aos domínios da ciência e que na crítica, sobretudo a que se apoia em critérios não mensuráveis como a que ajuda a pensar as artes, as verdades são sempre apenas nossas e por isso mesmo limitadas e passíveis de serem discutidas. É com esta noção bem presente que pretendo abordar o texto que hoje mesmo assinaste na coluna “Futuros”, incluída no suplemento “Actual” do semanário “Expresso”.

Claro que já adivinhaste parte do que se seguirá. Escreves, logo a abrir o texto: “É difícil, mas não impossível, construir outra música a partir de música arquivada sem que esta outra música “nova” soe, ela própria, a música arquivada logo à nascença. Depende, por exemplo, da quantidade de pontas soltas deixadas por um idioma estético na passagem inicial por este mundo (exemplo geralmente positivo: as mil e uma maneiras correntes de reutilizar o electro e o pós-punk), ou da margem de manobra para desafios que sobra após um mergulho de minúcia arqueológica em recantos específicos do passado (exemplo geralmente negativo: a asfixia moral e o reaccionarismo do «cratedigging» vertido para hip hop). (…)”

Neste teu parágrafo adivinha-se uma linha de pensamento com que discordo profundamente. Para começar, não compreendo o que significa “música arquivada”. De um ponto de vista de mercado, pode-se dividir a música entre “disponível” e “indisponível” (ou “descontinuada”, como os especialistas gostam de dizer), mas editar música é já “arquivá-la”: escolhe-se uma embalagem, um selo, um número de catálogo e disponibiliza-se o artefacto para os arquivos individuais dos consumidores, sejam eles estantes Expedit para vinil do Ikea, móveis com gavetas para CD’s da Moviflor ou folders no “ambiente de trabalho” de um computador cheios de ficheiros mp3. Editar é, também, arquivar. Mas, reconheço, isto é apenas um preciosismo de alguém que não acredita no conceito de “música arquivada”: a música, a realmente importante, não se confina ao espaço fechado de arquivos e consegue sempre fazer-se partilhar, influenciando gente através de gerações e continentes, mesmo que originalmente tenha sido editada (arquivada?) em quantidades muito reduzidas. E o teu texto é o exemplo acabado disso, pois debruça-se sobre uma editora (excelente, de facto) cujo catálogo é directamente inspirado pela Library Music – que, como sabes, não é nem nunca foi um género, antes um método de distribuição a agentes específicos (estações de tv e rádio, produtoras de cinema e publicidade…).

Mas vamos ao que realmente interessa. Os pontos de que eu verdadeiramente discordo são os que expões a seguir. Equacionas a dificuldade de “construir outra música a partir de música arquivada sem que esta outra música «nova» soe, ela própria, a música arquivada logo à nascença.” E depois apontas dois exemplos: um “geralmente positivo” e outro “geralmente negativo”. Curiosamente, fazes depender, no caso “positivo”, a capacidade de algo soar novo – e “novo” aqui entende-se por oposição a “arquivado” – de factores externos ao criador (dizes tu que isso “depende, por exemplo, da quantidade de pontas soltas deixadas por um idioma estético na passagem inicial por este mundo”) e, no caso “negativo”, a incapacidade de algo soar “novo” de factores directamente dependentes do criador (“(…) ou da margem de manobra para desafios que sobra após um mergulho de minúcia arqueológica em recantos específicos do passado.”). Assim de repente, parece que há um paradoxo na tua análise e que para ti, e indo directamente ao assunto, a música realmente nova é, portanto, a música realmente velha, pois será a que mais depende “das pontas soltas” de um qualquer género “de arquivo” e, ao mesmo tempo, que menos intervenção “minuciosa” do criador sofreu. Acredita que é assim que leio o teu texto. Se por acaso não o estou a ler correctamente poderás, se o desejares, elucidar-me.

E agora chegamos ao ponto fulcral do teu texto (no que ao meu desacordo diz respeito, claro, porque fulcral de facto é a apreciação que fazes da editora Ghost Box). Referes, a título de “exemplo geralmente negativo”, que o “cratedigging vertido para hip-hop” sofre de “asfixia moral” e é reaccionário. Escusado será dizer que não concordo. Não concordo, para começar, com a generalização que efectuas e que aponta essencialmente para a incapacidade do hip-hop apoiado na prática do crate digging (para mim são duas palavras) soar a “novo”. E não concordo quando acusas essa prática de estar moralmente asfixiada e de ser reaccionária.

Sobre a primeira parte da minha discordância: podia tentar explicar-te que nas obras de DJ Shadow, de Madlib ou Kanye West (julgo estar certo se disser que me lembro de teres gostado do álbum deste último produtor), em que a prática do diggin’ é central, se adivinha invenção e criatividade em estado puro, mas sei que estaria a cair no sinuoso campo das tais verdades pessoais e tantas vezes intransmissíveis. Prefiro argumentar que é nos resultados, e não nos métodos, que se pode detectar a tal “novidade” que procuras. Por isso, mais do que a “novo” até, a mim as obras dos autores que citei ainda agora soam-me intemporais, porque plenas de imaginação na forma como alteram coordenadas originais, vergando-as a uma vontade própria e com marca definidíssima. Pelo contrário, a mim, tanta da actual produção baseada nos pontos cardeais originais do electro e do pós-punk soa-me requentada. Talvez porque, na maior parte dos casos que conheço, o desejo de mimetismo suplante o de invenção. Mas, uma vez mais para mim, não vejo como muito diferente a atitude de samplar o passado através da procura de discos e a atitude de samplar o passado pela via da recuperação de artefactos originais (que nos casos que referiste, do electro e do pós-punk, ultrapassam a mera angariação das ferramentas originais – dos teclados aos processadores de efeitos que garantiam aquela sonoridade – para se estenderem até às marcas de identificação visual daquelas correntes: não vês os produtores de hip hop a reclamarem a herança do funk através da recuperação de pimp suits e bell bottoms, pois não?).

E, para terminar, sobre a segunda parte da minha discordância: não sei se entendo muito bem o que queres dizer com “asfixia moral” quando te referes ao crate digging. O que sei é que, como em qualquer género musical, há quem aborde uma prática específica de forma criativa e quem a tome apenas pela rama. E se essa “asfixia moral” a que te referes se prende com uma certa ideia de ética do sampling disseminada entre alguns produtores (tentem samplar apenas originais, hip hop não deve samplar hip hop, etc.) então peço-te que olhes para os exemplos que referes como positivos e que penses se conheces algum produtor na área do “novo” electro que fosse capaz de trocar um teclado Arp Odissey ou um Mini Moog original por um JV-1080 ou um Yamaha CS1x. Ou que troque a t-shirt das ESG ou dos Pop Group com que sobe ao palco por outra dos Backstreet Boys ou dos Korn. Todos os géneros possuem uma ética. Mesmo os que garantem a pés juntos que não. E, finalmente, sobre a palavra “reaccionarismo”, quero dizer-te apenas isto: se a usas como equivalente de “conservadorismo” não me parece que tenhas razão. Dois dos maiores pontos de encontro a nível mundial dos crate diggers são os sites da Soulstrut e da Vinyl Vultures e neles encontrarás uma generosidade e uma abertura que se estende desde a Folk e o Psicadelismo ao Tropicalismo Brasileiro, Música Concreta, Kraut Rock, Soul, Disco, New Wave, Punk, ao Reggae, Dub, Dancehall, Funk, Library Music (um território descoberto pelo hip hop há bem mais de uma década), Easy Listening, Rock FM (foram os diggers que reclamaram primeiro o “Big Beat” do Billy Squier que o Dizzy Rascal usou), Electro, House, o “novo” Pós-Punk, Dirty South, Crunk, Reggaeton, Grime e o que mais vier à rede. Se há coisa que um crate digger não aceita é o confinamento a um espaço estético reduzido. A sua curiosidade é naturalmente ampla e aberta a uma enorme panóplia de géneros e nenhum crate digger nega à partida uma ciência que desconhece. Não conheço outros “arquivistas” com essas qualidades. Se, enfim, esse “reaccionarismo” é usado no sentido clássico – anti-revolução – então não percebo mesmo. O crate digging iniciou e sustentou uma revolução – a do hip hop – e a essência da sua prática informou ao longo dos tempos géneros como o House ou Jungle e pode adivinhar-se igualmente em muito do electro e pós-punk a que te referes.

Resta-me pedir desculpa pela extensão da minha refutação, mas isso acontece apenas porque me interessa deixar tão claro quanto possível os motivos que me levam a discordar do que hoje escreveste.

E, para acabar, um grande bem haja para ti.

Rui Miguel Abreu

PS: Já 24 horas depois de ter publicado aqui esta Carta Aberta a Jorge Manuel Lopes descobri online um site com uma peça muito curiosa de vídeoarte, uma espécie de ensaio crítico com suporte visual inteiramente baseado no clássico Amen Break dos Winstons que o Dub, há muitas luas, já por aqui havia abordado no HdB. O vídeo pode ver-se aqui e contém dissertações muito curiosas sobre o mundo do sampling e o seu impacto cultural. Mais uma achega para esta discussão.