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HitdaBreakz

6/22/2005

STRATA EAST: INDIE JAZZ




Desde que existem músicos activos e a possibilidade de fixar interpretações que a atitude independente acompanha a música. De facto, e ao contrário do que muitos pensam, a explosão "indie" não se ficou a dever ao punk uma vez que já muito antes, mesmo em países onde a indústria musical era uma realidade ferozmente comercial (como sempre foi o caso dos Estados Unidos), se editava música longe dos olhos e das rodas dentadas das grandes corporações.



A década de 60, nos Estados Unidos da América, lançou junto da cultura afro-americana as sementes dessa independência. Muito graças às conquistas do Civil Rights Movement e à ultra-politizada consciência colectiva da época, a ideia de independência - de fugir às garras do que na gíria afro-americana da época se chamava "The Man" - ganhou raízes bastante fortes. E até artistas como James Brown ganharam o direito de controlar a própria carreira estabelecendo as suas próprias editoras (no caso de Brown foi a People).



Apesar desse clima, foi por razões muito mais prozaicas que em 1971 o trompetista Charles Tolliver e o pianista Stanley Cowell começaram a sua própria editora, a Strata East, nome inspirado numa operação que alguns contactos de Cowell em Detroit haviam lançado para promover espectáculos na comunidade negra daquela cidade.




Tolliver e Cowell, depois de uma longuíssima experiência que os viu a tocar juntos, por exemplo, no colectivo de Max Roach, juntaram esforços para criar o Music, Inc, um quarteto com Cecil McBee e Jimmy Hopps que haveria de garantir o primeiro lançamento da editora. Na verdade, nada o fazia prever. Charles Tolliver já mencionou mesmo em entrevistas que, juntamente com Cowell, tentou vender o disco a uma das editoras já firmadas no mercado, mas, perante a sua recusa, viu-se obrigado a reunir esforços com o seu companheiro para colocar ele mesmo o álbum no mercado. Talvez com uma ênfase - de início, pelo menos - menos política do que a Tribe de Detroit ou a Black Jazz de Chicago, também a Nova Iorquina Strata East abriu portas para suprir uma necessidade.




Tratando-se de veteranos do jogo do jazz, tanto Tolliver como Cowell sabiam o que fazer: prensaram o disco em vinil de qualidade, colocaram-nos dentro de uma capa simples (o preto e branco garantia custos reduzidos na gráfica), mas com design eficaz e garantiram uma boa rede de distribuição. E o resultado mais imediato foi o de logo terem outros músicos aparecido a bater-lhes à porta a perguntar se não estariam interessados em editar mais alguns discos. E o que era suposto ser aventura de um álbum só transformou-se numa operação que editaria mais de meia centena de títulos que ajudam a definir o lado mais interessante que o jazz teve para oferecer durante a década de 70.



Clifford Jordan, o saxofonista, foi o músico que lhes pediu guarida, logo após a edição dos Music, Inc. E a partir daí os músicos não pararam de bater à porta: Billy Harper, Keno Duke, Larry Ridley, Cecil Payne, Cecil McBee, Pharoah Sanders, John Hicks e até Weldon Irvine e Gil Scott-Heron. Todos foram editados pela Strata East que assim garantiu um estatuto mítico. Do free-jazz às experiências mais próximas da Soul, a Strata East soube manter-se aberta à invenção, mas igualmente próxima da comunidade. Claro que o facto de oferecerem aos músicos completa liberdade artística ajudou ao cimentar da reputação, que foi suficiente para levar a etiqueta até 1977. E, como é óbvio, essa atitude de liberdade não existia separada do mundo. Do psicadelismo hippie de São Francisco até aos ghettos das inner-cities, a verdade é que por todo o lado se faziam sentir os ventos de mudança que tinham começado a soprar no final da década anterior. E poucos souberam aproveitar esse clima como a Strata East, uma etiqueta que se pode orgulhar de ter um catálogo em que praticamente todos os seus lançamentos são grandes clássicos.





Neste link poderão encontrar uma lista com todos os títulos editados por esta grande editora. Não será fácil encontrar os originais da maior parte destes lançamentos, até porque o facto de se ter mantido independente impediu sempre a Strata East de encontrar o sucesso comercial que a sua aventurosa música merecia. Mas há uns anos a editora Soul Jazz colocou no mercado duas compilações onde a história da Strata East foi contada ao pormenor. Soul Jazz Loves Strata East e Strata 2 East (compilações duplas, pelo menos no formato vinil) parecem estar presentemente descatalogadas, mas serão certamente mais fáceis de encontrar do que os originais. Contudo, os 11 títulos que possuo com o selo Strata East foram todos adquiridos em Portugal o que deve ser certamente indicativo de que andam por aí mais cópias. O problema é que em anos recentes, muito graças ao mundo do diggin', sempre atento a estas experiências de inovação levadas a cabo na década de 70, os discos com este selo viram os seus preços aumentar. Muito devido à sua raridade, mas sobretudo graças à sua perene qualidade. Porque a Strata East soube editar música sem tempo, liberta de pressões comerciais e aberta à invenção e à experimentação!



Fica aqui um texto que assinei na Op a propósito da reedição mais ou menos recente de Winter in America, de Gil Scott-Heron e Brian Jackson.



GIL SCOTT-HERON
“Winter in América”
(Strata East/Get Back/Trem Azul)

“Look around in any corner/if you see some brother/looking like a gonner/it’s gonna be me…” Quando Gil Scott-Heron gravou estas palavras na canção “The Bottle”, incluída no memorável “Winter in América” (o seu único álbum para a “cult label” Strata East, originalmente editado em 1974), não podia imaginar que por esta altura haveria de estar a cumprir uma sentença de prisão por posse e consumo de cocaína. Diz-se que a arte imita a vida, mas no caso particular de Gil Scott-Heron parece que a sua vida cumpriu os desígnios que originalmente o inspiraram a escrever.
Scott-Heron é, sobretudo, um poeta que, como poucos, soube cantar a negritude na América, nunca se coibindo de expor os podres que avassalavam as suas ruas, apontando o dedo aos responsáveis de ambos os lados da barricada que delimita o “ghetto”. Neste álbum, por um lado, temos um profundamente irónico “H2O Gate Blues”, sobre o escândalo de Watergate denunciado pelo Washington Post, mas também se encontra “The Bottle”, um retrato agudo do vício dentro da sua comunidade. “See that black boy over there running scared/His old man in the bottle/He done quit his 9 to 5 he drinks full time/and now he’s living in the bottle…” Gil Scott-Heron, qual “griot” moderno, observa o pulsar do seu povo de uma esquina espiritual para depois disparar a pergunta “And don’t you think it’s a crime when/time, after time, after time, ‘people in the bottle?/There’s people living in the bottle…” Gil não fornece respostas, apenas se questiona, agitando bem em frente do seu próprio nariz um espelho que reflecte a complexidade de uma comunidade a braços com um novo género de devastação – interna, funda, dolorosa. Mas, como explica nas notas que assina no interior da capa deste álbum, “black people have been a source of endless energy, endless beauty and endless determination.” E realmente, a misteriosa beleza da arte de Gil Scott-Heron pode começar a explicar-se pelo facto da sua voz irradiar, a um tempo, dor e esperança, derrota e determinação.
“Winter in América” marcou o arranque da colaboração de Gil com o pianista e arranjador Brian Jackson, que o haveria de acompanhar até aos anos 80, através da sua discografia na Arista. A música que ambos criaram neste álbum é profundamente espiritual, descolando para um plano mais físico, como em “The Bottle”, quando as palavras adquirem a crueza de uma tentativa de abanão das consciências. Enleada na reverberação cristalina do Fender Rhodes, a voz de Gil Scott-Heron assume uma dignidade inabalável e, quase trinta anos depois da edição original, faz de “Winter in América” um presságio negro. Ainda nas notas do interior deste álbum, Gil Scott-Heron escreve: “We approach winter, the most depressing period in the history of this industrial empire, with threats of oil shortages and energy crises.” Os tempos não mudaram. E agora, é Gil que se encontra preso dentro de uma garrafa feita de grades. Peace go with you, brother! We will see you in the spring… RMA