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HitdaBreakz

6/20/2005

PSICADELIA : OS DIGGERS


Quando gosto de um género musical, tenho interesse em saber todos os pormenores que fizeram com que esse género musical fosse como foi. Gosto de saber as razões que existem à volta do género para que ele soe como soa, para perceber as suas singularidades, o paradigma de onde parte e o paradigma que, muitas vezes, contesta. Como alguns dos géneros pelo qual nutro enorme afinidade são géneros que tiveram o seu período áureo em locais física e temporalmente distantes de mim, esta contextualização de géneros tão específicos é, também ela, uma razão para saber mais de períodos históricos dos quais sei muito pouco. E, dada a sua especificidade, são períodos históricos que estão, normalmente, arredados da história do mundo que nos é, normalmente, apresentada.

Com o amor que tenho ao rock psicadélico, esta viagem aos contornos do rock psicadélico acaba por ser, também ela, uma viagem a um período de convulsão social a que o rock psicadélico serviu de banda sonora. Uma viagem a uma fase da história norte-americana pura e simplesmente apaixonante, tão cheia de sonhos como de desilusão.

Já,em tempos, tinha colocado um post sobre o psicadelismo. Este post vai ser uma continuação a esse. E outros posts existirão, no futuro. Mas este, este post é especial. Para quem visita o nosso blog há algum tempo, já está mais do que familiarizado com a palavra "digger" e com o seu significado. Mas há mais do que um significado para esta palavra. E é de um desses significados que vai tratar este post. E, incrivelmente, é um post que relaciona outros diggers e o período circundante do psicadelismo.

Os Diggers de São Francisco de que vamos falar têm este nome não porque andaram atrás de discos mas porque seguem, em parte, a filosofia dos Diggers ingleses que, no século XVII (mais precisamente em Abril de 1649), motivados pelo elevadíssimo preço da comida, revoltaram-se, reclamando que teria de haver entregas de terras aos mais pobres para que estes procedessem ao seu cultivo e desenvolvendo, eles próprios, toda uma postura protocomunista de desinteresse pela propriedade privada. Mas mais do que revoltarem-se passivamente, os Diggers ingleses tomaram terras em Saint George's Hill, em Surrey, assustando a Commonwealth, graças ao crescente número de pessoas que a eles se juntavam nas terras por eles tomadas. Só em 1650 e à força é que a rebelião foi contida mas a semente para que a sociedade fosse livre da propriedade privada e livre de toda e qualquer forma de compra e venda estava mais do que lançada.

Os Diggers de São Francisco seguem um caminho relativamente semelhante ao dos Diggers de Inglaterra, principalmente na filosofia de todo o movimento. Os membros fundadores dos Diggers eram actores da Mime Troupe o que ajuda a explicar a forte componente dramático-artística em toda a sua actuação nas ruas de São Francisco.

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San Francisco Mime Troupe

Todo o conceito dos Diggers de São Francisco gira à volta da palavra "free". Estava disposto a traduzir isto para grátis ou para borla mas acho que nenhuma destas palavras consegue transmitir toda a força que a palavra "free" encerra em si : a associação não só à gratuitidade mas também à liberdade. Talvez a palavra que melhor se aplique aqui é "livre", aqui entendida na sua vertente física mas também económica e será com este entendimento que gostaria que lessem a palavra "livre".

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A actuação dos Diggers estava feita de forma a criar uma Cidade Livre. "Liberdade significa que tudo é livre". Era através do "livre" que os Diggers tentaram, quer através da anarquia das suas actuações dramáticas quer através das suas actuações sociais, criar uma sociedade à parte da sociedade do dinheiro. Para os Diggers, o dinheiro era impossível de aceitar numa sociedade realmente livre. E, para sustentar tais ideias, os Diggers criaram toda uma estrutura de pontos onde o "livre" era a palavra de ordem : desde clínicas médicas a apoio legal gratuito, hospedarias, sistemas de transporte gratuitos.

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Comida Livre no Panhandle

A parte mais visível desta Cidade Livre, tal como nos seus antecessores ingleses, era a comida que, como só podia ser, era livre. Na segunda edição do jornal panfletário hippie mais conhecido em todo o mundo, o Oracle, um anúncio declarava solenemente esta intenção:

"Comida Livre : Em Oak-Ashbury Panhandle, todos os dias às 4 da tarde. Tragam um prato e uma colher. É livre porque é vossa. Os Diggers."

Dois dos seus mais destacados activistas, Billy Murcott e Emmett Grogan, foram até ao mercado abastecedor de São Francisco e convenceram os vendedores a lhes dar vegetais não vendidos ou com um dia e a lhes dar partes de galinhas e perú. No regresso, roubaram leite numa loja local e estavam reunidos todos os ingredientes para o primeiro de muitos Comida Livre no Panhandle.

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Emmett Grogan

Mas isto é apenas a parte mais folclórica daquilo que foram os Diggers. É a parte que vem sempre citada cada vez que se falam dos Diggers. Mas não era só como fornecedores de serviços gratuitos que os Diggers devem ser recordados. Há toda uma atitude à volta dos Diggers que lhes é singular. Ser livre implicava fazeres aquilo que tinhas a fazer. Quando perguntavam aos Diggers o que é que se tinha de fazer para se ser Digger, a resposta era a mesma : já és um digger, faz o que tens a fazer.

Ser livre era a resposta dos Diggers para tudo. Sem nunca esquecer as origens teatrais, os Diggers usavam o "livre" para explicar toda a sua maneira de ver a sociedade. Para Peter Berg, outro nome importante nos Diggers de São Francisco, "os Diggers eram uma troupe de teatro de guerrilha que encenavam o "livre", que envolviam as pessoas nisto e faziam com que elas encenassem o "livre". Tudo, a estrutura que criaram, as anárquicas encenações de rua, tudo isto eram manifestações cénicas não só para mostrar ao mundo uma visão diferente daquilo que podia ser a sociedade mas também para criar um embrião dessa mesma sociedade sem propriedade privada e onde o dinheiro não tinha a primazia que tem na nossa e onde a anarquia individualista do "quero fazer, faço" é raínha.

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Loja Livre em Fredrick Street

E era através do teatro de guerrilha que tal visão da sociedade livre era mostrada a toda a sociedade dita normal. Era a concretização daquilo que o agora conhecido actor Peter Coyote, mas que nesta altura era um Digger destacado, fala quando diz que "se a tua fantasia para uma sociedade for boa, as pessoas juntam-se a ti". E, na verdade, assim era. Numa São Francisco a jorrar de contracultura, as pessoas juntavam-se livremente (não podia ser de outra maneira) aos eventos dos Diggers.

E o que é um evento Digger?

Houve vários eventos emblemáticos. A própria Comida Livre era um evento encenado. Quando iam para o Panhandle, que é um parque em São Francisco, para irem comer livremente, quem queria a comida tinha de passar por uma enorme moldura a que davam o nome de Free Frame of Reference (ou Moldura de Referência Livre). Com ela, pretendia-se que quem a atravessasse, que isso fosse o primeiro passo para conseguir mudar a sua perspectiva, a sua maneira de ver o mundo.

Outro evento muito conhecido dos Diggers era o Jogo dos Cruzamentos. Nele, todas as pessoas eram incentivadas a tomar as ruas. Agora imaginem milhares de pessoas na rua, fechando ruas ao trânsito, espontâneamente, apenas e só movidas pela frase "tomem as ruas". Era esta busca da espontaneidade anárquica das multidões e encenada através de uma frase apenas que eram o guião dos Diggers para os seus eventos.

Mas havia mais. Havia toda uma parafernália de pequenos objectos que faziam com que estes eventos se tornassem quase mágicos. No Jogo dos Cruzamentos, houve Diggers que foram a um ferro-velho e arrancaram espelhos retrovisores dos carros abandonados e que os trouxeram para o cruzamento, dando-os às pessoas para que reflectissem o sol para a rua, para os carros, para todo o lado. Outros eventos tinham milhares de pessoas sentadas ao longo das ruas a tocar flautas. O objectivo final era a rebelião social, culminando com a entrada da polícia em cena, possibilitando um "confronto" físico entre a sociedade normal (representada pela polícia) e a utopia Digger, o que invariavelmente acontecia. Não era de esperar outra coisa : tomar as ruas não era, de certeza, algo que agradasse ao establishment.

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Mercado Livre

Era um ideal bonito, concretizado de forma radical, é certo, mas apoiado na arte e na espontânea adesão das pessoas a essa mesma arte. Mas o choque de realidade foi brutal. Apoiados que estavam em doações e bens não vendidos, ficou cada vez mais complicado pedir aos vendedores que os dessem, sabendo estes que eles eram entendidos como o inimigo dos Diggers. Ou seja, os Diggers pediam ajuda à própria estrutura que queriam destruir. Isso fez com que fossem olhados com desconfiança pelos vendedores, que, entre outras coisas, desconfiavam dos reais intuitos dos Diggers, pensando que usariam as borlas que estes davam para conseguir, cobertos pelo manto do livre, dinheiro e lucro. Outro enorme revés para os Diggers foi o desaparecimento da adesão espontânea dos hippies aos seus eventos. Mas, mais do que qualquer outra coisa, foi o próprio movimento Digger que, por si, se desmantelou, não só incapaz de sustentar o conceito de "livre" enquanto se expandia (não havia comida para todos, nem roupa, nem sequer dinheiro) mas também ele foi fustigado pela heroína que, entretanto, tinha substituído o LSD como prato do dia no cocktail psicadélico.