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HitdaBreakz

5/19/2005

AFRIKA BAMBAATAA EM DIRECTO



PG, RMA e D-Mars com Afrika e o B-Boy que o acompanhou em Portugal.

Afrika Bambaataa esteve em Portugal para duas actuações como DJ, no Lux e na recém inaugurada Casa da Música. E o momento revestiu-se de uma aura perfeitamente solene, o tom exactamente apropriado para receber um verdadeiro gigante, um visionário que transformou o mundo ao criar uma idealista cultura de unificação pelo groove a que chamou Hip Hop. Do Bronx dos primórdios até aos dias de hoje uma longa distância foi percorrida. Bam assistiu à transformação do Hip Hop de banda sonora do ghetto empobrecido num negócio de muitos milhões de dólares com presença alargada em todo o planeta. Pelo meio, houve tempo para que Bambaataa criasse novos géneros, como o Electrofunk, e espalhasse uma mensagem de positivismo e progressão pela Cultura através da sua Universal Zulu Nation.
Algures no Parque das Nações, mesmo em frente ao oceanário (“o quê?... Têm tubarões e isso ali dentro? Vamos lá quando a entrevista terminar!”, exclamou um entusiasmado Bam quando lhe explicámos o que era aquele futurista edifício, mesmo em frente ao restaurante onde decorreu a nossa conversa) tivémos a oportunidade de recolher as impressões do gigante Bambaataa. Este é um resumo dessa conversa!

Qual é a tua primeira memória do Hip Hop? Quando é que percebeste que algo novo estava a acontecer, uma nova cultura estava a ser criada?
Nós vínhamos todos de uma era de Soul, Funk e Disco Sound. E o Hip Hop, basicamente, assumia-se como o novo Funk. Além disso havia toda aquela cultura importada da Jamaica com o Grandmaster Flash e o Kool Herc e o que eles faziam com o “toastin’” que levou a que alguns irmãos começassem a rimar em cima do DJ. Foi por volta de 1974, quando os elementos todos se começaram a juntar – os MC’s os artistas de Graffiti, os B-Boys e as B-Girls e os DJ’s – que decidimos chamar a esta nova cultura Hip Hop. Mais tarde o quinto elemento – o Conhecimento – foi adicionado à cultura. Mas foi quando todas as peças se encaixaram num todo coerente que percebemos que aquilo era Hip Hop. Antes chamávamos-lhe outra coisa qualquer, sei lá, Boing Oing (risos).

E tiveste imediatamente a percepção de que estavas perante uma revolução?
Sim. Quando consegui juntar toda a gente e decidi encarar o que estava a acontecer como uma Cultura percebi o poder que a organização poderia ter. Porque antes cada um fazia a sua cena sem se preocupar com a “bigger picture”. Mas com a Universal Zulu Nation, com a organização e a consciência de que fazíamos todos parte de algo maior veio a certeza de que iríamos estar aqui muito tempo!

Podes descrever-me um pouco da atmosfera das primeiras festas?
Havia festas em diversos locais, sempre com muita gente – havia locais que levavam entre quinhentas a mil pessoas e estavam sempre cheios. E depois cada um dos DJ’s tinha o seu estilo muito distinto de tocar. Eu era mais conhecido como o Master of Records, porque conhecia os breakbeats mais loucos escondidos nos discos mais improváveis. Eu tinha um estilo mais louco, mais selvagem, mas outros, como o Flash, tocavam mais Funk ou Disco. Depois também começaram a aparecer os MC’s, cada um cultivando um estilo. E isto, claro, electrizava o público, os B-boys e as B-Girls que andavam sempre eles próprios à procura de novos passos, novas maneiras de espantar toda a gente. Naquelas festas a criatividade sentia-se no ar!

Lembras-te de alguns dos discos que costumvas passar e que causavam impacto na pista de dança?
Naquela época havia muito “diggin’ in the crates”, as pessoas procuravam discos com breaks para os poderem tocar nas festas. Eu andava sempre à procura dos discos mais invulgares, à procura de novas etiquetas, absorvendo toda a informação que estava disponível nas capas. Assim eu fui descobrindo coisas como Jam on The Groove do Ralph MacDonald, Dance to the Drummers Beat do Herman Kelly, Apache, Bongo Rock e In a Gadda da Vidda dos Incredible Bongo Band, tudo do James Brown que tivesse breakbeats, havia também muitos breaks em discos de Salsa de gente como Eddie Palmieri ou Ray Barretto. Ride on do Ray Barretto, por exemplo. Também usava muitos discos de rock, dos Foghat aos Thin Lizzy, dos Beatles de Yellow Submarine aos Monkees de Mary Mary, os Grandfunk Railroad em Inside the Canal, o Big Beat de Billy Squier, o Honky Tonk Women dos Rolling Stones. Também tocávamos muitos instrumentais, como o Funky Nassau, muitos discos africanos do Manu Dibango e Fela Kuti. Muito Fela Kuti mesmo. Havia uma dança para a música dele, que se chamava Bus Stop e que agora é conhecida como Electric Slide. Ou seja, tocávamos tudo: Funk, Heavy Metal, Soca, Calipso, Disco, Reggae, Rock, Jazz, música africana, das Caraíbas, música de anúncios de televisão, discos com discursos de Malcolm X ou Martin Luther King.

As pessoas já iam para as festas à espera de serem surpreendidas?
Mais ou menos. Havia certas coisas que elas praticamente exigiam ouvir. O meu público, provavelmente, era o mais progressista. Mas os estilos também eram diferentes: numa festa podias ter um DJ que durante 20 minutos cortava o Good Times dos Chic, com alguns MCs a rimar em cima, mas eu tinha sempre que levar uma tonelada de discos para as festas porque nunca tocava mais do que dois minutos de um disco. E depois havia muita concorrência, porque quando eu estava a tocar havia literalmente gente com cadernos de notas a apontar o que eu tocava.

E por isso começaste a tapar as etiquetas dos discos…
Exacto. A tapá-las ou a descolá-las mesmo dos discos, para que estes espiões não soubessem o que eu andava a passar. Eu costumava reconhecer um disco pela cor da etiqueta, pela capa. Percebia logo se era um disco na Columbia ou nalguma etiqueta independente e depois pelo som chegava ao título da canção. Depois era só cruzar os dados e ir à procura do disco.

Muito bem, podes falar um pouco sobre o início da Zulu Nation?
A Universal Zulu Nation começou em 1973 e o objectivo principal foi acalmar a violência dos gangs e muito do pensamento destrutivo que as pessoas tinham na comunidade afro-americana. Depois começámos a organizar-nos e a ter aquilo a que chamávamos “Infinity Lessons”, aproveitando para estudar uma série de professores, do honorável Elijah Muhammad até Malcolm X, Martin Luther King. O objectivo era congregar uma série de culturas, ideologias, nacionalidades e religiões sob um mesmo tecto. À medida que fomos viajando e a estabelecer-nos noutros países começámos um movimento internacional, promovendo a troca de informação. Por exemplo, se a Zulu Nation se estabelecesse em Portugal alguns irmãos viajariam depois para França, conheceriam Zulus de lá e trocariam experiências. E, ao mesmo tempo, todas estas pessoas se apoiavam, oferecendo lugares onde outros Zulus pudessem ficar, trocavam informações, partilhavam os seus pensamentos e reflexões sobre os mais variados assuntos.

Olhando para o mundo do Hip Hop hoje em dia, dirias que esse espírito de união e partilha professado pela Zulu Nation se perdeu?
As pessoas que estão mesmo por dentro do espírito da Cultura Hip Hop continuam a professar a união, continuam a seguir os princípios dos pioneiros. Depois tens as corporações que transformaram alguns aspectos desta Cultura em comércio puro e essas corporações controlam muitas das nossas percepções dessa cultura. Elas procuram dizer-nos o que é a parte válida da cultura enquanto nos vendem os discos de rap que passam na MTV. E se elas nos dizem que o Hip Hop é sinónimo de Bling Bling é isso mesmo que as pessoas vão começar a pensar. Nunca ninguém se preocupou em ir falar com os pioneiros e preferiram antes alimentar divisões entre a True School e a Nu School, para que fosse mais fácil vender os seus produtos. Mas o Rap que estas corporações vendem é parte de uma cultura mais vasta. Só que a mior parte das pessoas hoje em dia quando pensam em rap pensam em Gangsta Rap ou no que vêem na MTV e esquecem-se de onde originou tudo isto. Esquecem-se porque não há informação. Por isso é que muita gente hoje em dia procura informação na Internet, nas rádios online, em fóruns. Por isso é que vês essas pessoas com os seus Ipods ou sintonizadas em rádios por satélite. Porque não é fácil ouvir o verdadeiro Hip Hop nas estações comerciais. Hip Hop não é apenas rap. O Electrofunk faz parte do Hip Hop. O Miami Bass faz parte do Hip Hop. O Go-Go de Washington DC faz parte do Hip Hop. E também o Trip Hop, o Drum n’ Bass, o Deep House… Tens Soca Hip Hop, Salsa Hip Hop, Ragga… Se as pessoas quiserem ver para lá do que as grandes empresas lhes mostram, vão descobrir toda uma Cultura, bem mais vasta.

O Hip Hop já tem mais do que três décadas, mas nalguns países, como Portugal, ainda está a dar os seus primeiros passos. Quando viajas consegues reconhecer noutros países o mesmo entusiasmo primordial que havia nos Estados Unidos quando o Hip Hop estava a dar os primeiros passos?
Há muito Hip Hop na Europa, em África, na América do Sul. Mas os tentáculos das corporações já chegaram a esses pontos do globo também e por isso às vezes a visão do Hip Hop que encontras nesses sítios é um pouco distorcida. Mas houve coisas positivas que passaram, por exemplo com alguns filmes como o Beat Street. Esse filme fez muito pelo Hip Hop internacionalmente. Fez com que muita gente quisesse desempenhar um papel nesta cultura, levando-os a começar a fazerem breakdance. Tal como quando nós éramos jovens e íamos ao cinema ver aqueles filmes de Kung Fu e saímos das salas a querer fazer aqueles golpes impossíveis, também as pessoas que viram o Beat Street queriam aprender break ou DJing. Por isso sim, há muita gente noutros países a tentar manter a verdadeira essência desta cultura, trazendo alguns dos pioneiros da True School para aprenderem com a sua experiência. Em Inglaterra por exemplo há batalhas de B-Boys, costumavas ter o UK Fresh, na Alemanha há a Battle of The Year e na América tens sempre o aniversário da Universal Zulu Nation. Há muita gente a tentar manter o lado cultural do Hip Hop bem vivo.

Mudando de assunto agora e a propósito do clássico Planet Rock. Esse tema representou uma aproximação deliberada e consciente à tecnologia da época ou vocês foram forçados a usá-la simplesmente porque não havia orçamento para levarem uma banda para estúdio?
Bem, quando fizemos o Jazzy Sensation foi com uma banda. Todas as coisas da Sugarhill eram gravadas com uma banda.

Porque eles tinham uma banda residente, certo?
Exactamente. Mas com o Planet Rock eu andava à procura de outro som. Eu estava habituado a tocar o que se chamava Techno Pop – os Kraftwerk, Yellow Magic Orchestra, Gary Numan. O meu público respondia muito bem a esses sons por isso eu perguntei a mim mesmo “e se eu pegasse nestes sons e lhes acrescentasse aquele funk do George Clinton, Sly and The Family Stone ou James Brown?” E foi assim que decidimos ir à procura desse som, acrescentando-lhe breakbeats mais funky. Queríamos fazer aqueles sons electrónicos falar, como o Sly Stone tinha feito no álbum There’s a Riot Going on. Queríamos usar a electrónica de uma forma mais humana. E eu falei com o Arthur Baker e apresentei-lhe um tipo que era o John Robie, que fazia o que queria com os sintetizadores.

A ideia geral na Europa naquela época era a de que o som dos Kraftwerk era frio. Eles tinham sucesso, mas havia a ideia de que a música feita com máquinas era fria. E tu provaste que era possível extrair funk dessas mesmas máquinas.
Definitivamente. Apesar de eu ver tipos como os Kraftwerk como sendo bastante funky. Lembro-me de olhar para a capa de discos como Man Machine e Trans Europe Express e pensar “bem, estes tipos parecem esquisitos, com estas camisas (risos)”, mas apesar de soarem mecânicos, havia um elemento dançável na sua música. E eu já conhecia os Yellow Magic Orchestra, costumava usar o Bombers do Gary Numan para os MCs rimarem em cima. E também tocava discos daqueles pioneiros do Moog, como o Dick Hyman ou o Hugo Montenegro. Por isso juntei todos esses sons na minha cabeça para criar algo de novo. A maior parte dos rappers costumava inspirar-se nos Temptations para o seu look, mas nós criámos um estilo novo, completamente louco, com as caras pintadas e roupas realmente malucas. Eu estava a tentar apanhar também o público do punk.

E há aquela história incrível de levares o Malcolm McLaren a uma festa no Bronx para lhe mostrares o que era o Hip Hop. Achas então que esse aspecto visual foi muito importante para a união de punks e b-boys nalgumas das primeras festas?
De certeza. Nós fomos sempre conta a corrente. Quando toda a gente tocava funk, nós passámos dois ou três anos a tocar rock e disco para o nosso público. Depois o funk desapareceu das rádios e só se ouvia disco e por isso nós começámos a recuperar o Sly Stone, o James Brown. Acho que esse espírito contra-corrente encontrava um eco na atitude punk.

Sabes, existe agora uma espécie de revival desse espírito de Nova Iorque de finais dos anos 70, inícios dos anos 80, em que a sonoridade de grupos como as ESG ou os Liquid Liquid está a ser recuperada por gente como os Rapture. E paralelamente há também uma recuperação do espírito original do funk. Achas que estamos à beira de assistir a um revival do espírito original do Hip Hop, achas que aquele som do início dos anos 80 poderá voltar?
Eu vejo o Hip Hop como uma linguagem galáctica, universal. O futuro que nós profetizávamos com as nossas visões musicais pode estar aí. O tipo da Virgin Records já tem uma nave para turismo espacial. Por isso o futuro que profetizávamos poderá não estar muito longe. E quando essas viagens se tornarem reais não tenho dúvidas de que o Hip Hop se vai tornar universal. E a única forma de se tornar universal é recuperando o funk primordial.

E, para acabar, continuas a procurar o Beat Perfeito?
O título dessa música, Looking for the perfect beat, não se referia necessariamente a uma batida, mas àquele pulsar universal que nos liga às coisas, à vida, à natureza, a outros planetas. Nesse sentido, continuo em busca dessa ligação, a melhorar a minha relação com o mundo.

Nota: Esta é uma versão alargada da entrevista que podem ler no mais recente número da Dance Club. Obrigado ao D-Mars por ter ajudado na entrevista!