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HitdaBreakz

4/24/2005

SMELLS LIKE FUNK SPIRIT



James Brown

O Funk nasceu como um grito, filho de uma liberdade conquistada nos anos 60 pelos negros americanos. Quatro décadas depois, os enunciados de James Brown continuam tão actuais como antes.


O Funk nasceu em meados dos anos 60, quando James Brown, algures entre Papa’s Got a Brand New Bag e Cold Sweat, percebeu que a herança pesada do R&B e o contexto contemporâneo da Soul já não acompanhavam o ritmo primal que cozinhava a cada nova sessão, com uma banda que incluía veteranos de jazz, jovens bateristas e uma série de outros músicos profissionais de múltiplas proveniências. Apesar dos inúmeros discos que editou neste período (com muitos a surgirem no mercado sem a sua autorização), era ao vivo que Brown melhor conduzia os destinos da sua música e foi em palco que o seu som começou a mudar. E tempos agitados como aqueles – com o Civil Rights Movement ao rubro e todas as erupções de liberdade que a conservadora sociedade norte-americana relutantemente tentava encaixar – reclamavam uma música mais frenética, liberta do lado mais espiritual da Soul e ainda mais avassaladora do que o primitivo R&B. O Funk, pode-se dizê-lo, limitou-se a traduzir o pulsar de uma época. Paradoxal é o facto de, para um género tão agarrado a um tempo e a uma geografia específica, as malhas do Funk continuarem a entrelaçar-se hoje como parte de uma agitada cena que parece não distinguir entre pioneiros e novos praticantes, assumindo-se este estilo como um corpo vivo que ainda tem muito para dar.

Funk & Hip Hop

“Não sei explicar muito bem porquê,” adiantou, em entrevista ao Blitz, Keb Darge, “mas há algo no Funk que transcende épocas, línguas e até raças. Quando eu coloco Who’s The King de Joseph Henry as pistas explodem, quer eu esteja a pôr música em Londres ou em Tóquio, em Xangai ou em Hong Kong, em Sidney ou em Bruxelas.” Darge é por muitos apontado como um dos principais responsáveis pelo renascimento em força do Funk. DJ veterano cujas raízes se estendem até à movimentada cena da Northern Soul, Keb Darge compilou variados discos para a editora Barely Breaking Even nos últimos anos. Séries como a Legendary Deep Funk ou Funk Spectrum e noites como a Deep Funk no Madame Jo-Jo’s, em Londres, elevaram Darge até aos píncaros do panorama Nu-Funk, transformando instantaneamente cada novo disco usado nos seus sets no título mais desejado por um verdadeiro exército de coleccionadores espalhados por todo o mundo. Keb Darge prepara-se para editar agora um novo álbum na BBE, parte de uma série que atravessará vários estilos (Kings of Disco e Kings of Soul já estão na forja). Obviamente, Darge assina o primeiro volume de Kings of Funk, dividindo a tarefa com Rza, o visionário produtor dos Wu-Tang Clan. Já no passado, na série Funk Spectrum, Darge repartiu a responsabilidade de “desenterrar” pérolas esquecidas do legado do Funk com gente como Pete Rock ou DJ Shadow. É que as ligações entre a história do Funk e o Hip Hop – por via do sampling – são profundas. Keb Darge, no entanto, prefere ver essas parcerias como mera opção estratégica da editora, referindo que de todos os nomes do Hip Hop com que trabalhou “só o Josh, ou DJ Shadow como é conhecido, é que é um verdadeiro conhecedor. Apesar de ser muito novo,” prossegue Keb, “o Josh possui um enorme respeito pela história do Funk e conhece realmente as raízes do género. Há dealers americanos com que eu lido que já há 20 anos que vendem discos ao Josh. Para os outros produtores, o Funk é apenas uma fonte de breaks. Basta ver a selecção do Rza…”
De facto, Keb Darge levanta uma questão pertinente. O Funk foi um dos principais combustíveis do lado musical do Hip Hop, tendo sido samplado até à exaustão. Em parte por naturais razões culturais (os primeiros produtores – quase todos negros - começaram por samplar os discos que tinham à mão, abordando as colecções dos pais), e, por outro lado, por óbvias questões tradicionais (afinal foi por cima de breaks de Funk que os primeiros MCs testaram as suas rimas). Nesta época de deslumbramento “samplista” e com os velhos códigos de direitos de autor inadequados a esta prática, a obra de um pioneiro como James Brown foi tomada de assalto – o MC Edan, que se prepara para lançar novo álbum de título Beauty and The Beat, editou recentemente uma compilação de temas de Hip Hop circa 1988 cuja particularidade uniformizadora residia no facto de todos samplarem Funky Drummer de James Brown… Por isso mesmo, e como forma de reclamar os royalties que lhe eram devidos, o padrinho da Soul editou em 88 o álbum I’m Real, onde se insurgia contra a possibilidade de poder passar a ter uma existência virtual através do sampling. Na verdade, o Hip Hop manteve-o vivo e até se organizou em campanha para o libertar quando foi encarcerado por ter disparado contra a mulher.


The Rza

È portanto inegável que o Hip Hop fez muito pela manutenção da vitalidade e da validade do Funk. O sampling, para muitos, funcionou como o instigador de uma curiosidade que manteve o mercado das reedições bem vivo, com novas compilações a surgirem nos escaparates com cada vez maior frequência. Editoras como a Harmless, a Soul Jazz, a Now Again ou a Luv’n’Haight não se aventurariam nestes terrenos se não houvesse um público ávido de conhecer as raízes de um género que se habituou a ouvir filtrado em composições de Hip Hop. O que levou a um efeito curioso. Se é verdade que, musicalmente falando, a primeira geração do Hip Hop foi educada com uma rigorosa dieta de Funk, não será menos verdade que a nova geração do Funk cresceu embalada pelas batidas sampladas do Hip Hop. Veja-se o caso da Breakestra, que editou um álbum e variadíssimos singles na Stones Throw: trata-se de uma orquestra formada por um guitarrista que é igualmente produtor de Hip Hop (Miles Tackett aka This Kid Named Miles) com o único propósito de tocar breaks – aqueles pedaços dos discos de Funk eleitos pelos produtores dos discos de Rap para sustentarem os discursos dos MCs.

Funk 45s

A nova geração do Funk – de onde está a emergir a diva Sharon Jones, cujo novo álbum é apontado por Keb Darge como o primeiro disco gerado pelo movimento Nu-Funk capaz de escalar os Tops de Vendas mundiais – apoiou-se em editoras como a Daptone e a Soul Fire nascidas originalmente para reeditarem obscuros singles de sete polegadas tornados famosos pelo sampling dentro do Hip Hop. Aliás, o momento mais visível do fenómeno de coleccionismo dos chamados Funk 45s – que em sites como o Ebay chegam a atingir os milhares de dólares em disputadíssimos leilões – seguiu-se à edição de Brainfreeze, um CD de edição limitada assinado por DJ Shadow e Cut Chemist dos Jurassic 5 que documentava um set em que os dois giradisquistas cruzaram exclusivamente raridades de Funk em sete polegadas. Esse álbum despoletou uma corrida frenética às poucas cópias que restavam de cada um dos singles que Shadow e Chemist haviam usado naquele irrepetível set e os círculos de coleccionadores de Funk 45s, apoiados em fóruns de discussão online, agitaram-se até à beira da histeria.


Brainfreeze

É preciso entender que o fenómeno despoletado por James Brown na segunda metade dos anos 60 teve um impacto que se estendeu muito para lá da música. Brown, por muitos apontado como “The Hardest Working Man on Show Business”, não era apenas um arranjador de excepção e um espantoso catalizador de energias, tendo-se afirmado igualmente como um astuto homem de negócios e porta-voz de uma geração que assistiu a uma profunda mudança na sociedade americana. Gritos de revolta como “Say it loud, i’m black and i’m proud” transformaram James Brown num fenómeno espantoso que todos os jovens americanos, principalmente os que queriam ter uma participação activa na revolução de costumes então em curso, queriam imitar. Por isso mesmo, a América profunda assistiu ao nascimento de uma banda de Funk em cada esquina com o som sincopado de James Brown bem dominado e tendo todas uma única ideia na cabeça: vencer pela música as apertadas fronteiras da sua realidade local. Assim, centenas de pequenos selos foram aparecendo, especializando-se na edição de obscuros grupos de Funk cujos sonhos eram quase sempre desfeitos quando o único single que gravavam se revelava incapaz de impressionar mais do que meia dúzia de amigos e um ou outro disc-jockey de uma qualquer estação local. Estes singles acabaram por ser esquecidos pelo tempo, adormecidos em armazéns e caves poeirentas de pequenas cidades do Texas ou do Midwest americano até que o fenómeno do Diggin’, nascido da vontade de produtores e Dj’s de Hip Hop encontrarem a batida perfeita, os começou a revelar ao mundo.

O som do funk

O diggin’ existe de facto desde que os primeiros DJ’s começaram a construir a sua reputação em cima das batidas que usavam para animar as festas embrionárias do Bronx. Na época dourada de gigantes como Kool Herc e Afrika Bambaataa, mais do que a técnica premiava-se o conteúdo e o melhor DJ era o que possuía os melhores discos. Com o surgimento dos primeiros samplers acessíveis ao comum dos mortais, em finais da década de 80, o diggin’ explodiu inequivocamente, levando a que milhares de pessoas procurassem reconstruir os passos musicais dos seus grupos de Hip Hop favoritos adquirindo os discos usados por eles nas suas composições. Nesta época, pessoas como Soulman e Cosmo Baker – nas páginas, respectivamente, da Rap Sheet e On The Go – começaram a escrever sob o fenómeno Diggin’ in the Crates, chamando a atenção para inúmeras rodelas de vinil perdidas nas malhas do tempo. E o fenómeno foi crescendo durante toda a década de 90, dando origem a editoras como a Daptone, Soul Fire, Funk 45 ou Jazzman que depressa perceberam que podiam alargar o seu raio de acção se não se limitassem a reeditar os discos mais raros que os seus timoneiros iam descobrindo no terreno. E depois dos esforços pioneiros dos Poets of Rhythm e Breakestra, uma nova geração começou a impor-se: grupos como os Soul Destroyers, New Mastersounds, Speedometer, Dap Kings, The Mighty Imperials, Sugarman Three ou até os Antibalas recuperaram para o presente a ética e a energia primordial do Funk depois de alguns deles terem até estado envolvidos em pequenos exercícios de “fake vintage Funk” (os Antibalas, por exemplo, foram o grupo responsável pelo álbum dos “nigerianos” Daktaris na pioneira Desco, a editora que depois deu origem à Soul Fire e à Daptone quando os sócios Philip Lehman e Gabriel Roth seguiram caminhos diferentes).

A imposição do som Nu-Funk fez-se de uma estratégia envolta num rigoroso fundamentalismo tecnológico: os discos destes novos grupos são quase sempre gravados em suportes analógicos, recorrendo-se tanto quanto possível a máquinas semelhantes às que foram usadas nos estúdios originais que viram nascer o Funk e que garantiam o carácter cru dessa música. Keb Darge, uma vez mais, revela que grande parte da magia dos velhos discos de Funk residia no seu carácter profundamente humano: “muitas daquelas bandas gravavam com orçamentos baixíssimos ou mesmo com nenhum orçamento em estúdios de dimensão microscópica com tecnologia obsoleta até mesmo para a época. O facto desses discos terem incorporado pequenos erros de produção e até de execução fez deles peças únicas e irrepetíveis com música extremamente humana. O novo Funk vai pela mesma via, recusando o caminho digital que toda a gente parece seguir. Nesse aspecto o Gabriel Roth é um génio que eu coloco ao mesmo nível do James Brown.”


Kool & The Gang

Passado, presente e futuro

Como se poderá compreender, avaliar o profundo impacto do Funk de forma realista só seria possível se tivéssemos à nossa disposição o espaço normalmente reservado a uma enciclopédia. Ainda assim, é possível afirmar-se que a descendência directa de James Brown – dos Kool & The Gang aos Black Heat, dos Mandrill a Sly Stone ou ainda dos Meters aos Funk, Inc. e dos Parliament/Funkadelic aos inúmeros derivados da escola de George Clinton e Bootsy Collins – cozinhou um som revolucionário cujas ramificações ainda hoje se fazem sentir de forma intensa em variadíssimas correntes da música mais comprometida com o groove. O Funk começou por firmar os pés numa atitude mais primal, onde as descargas de energia através da repetição de diversos argumentos rítmicos (não só a bateria e o baixo, mas igualmente as guitarras, as teclas e a secção de metais) funcionavam como um bloco de peso cujo singular objectivo era o esmagamento pelo groove. Durante a década de 70, múltiplas transformações ocorreram. A visão orquestral da Soul de Marvin Gaye, por exemplo, inspirou Isaac Hayes e as suas sinfonias para detectives privados que tanto eco encontraram nos ecrãs de cinema. Por outro lado, a célula Funk a operar sob a batuta de Vince Montana a partir de Filadélfia procurava injectar sofisticação nesse groove primal dando origem a um som com maior dinâmica, menos interessado no constante abalo rítmico e mais envolvido com a noção de dramatismo, crescendo e outras formas de gestão de tensão dentro de uma mesma canção. O Disco Sound foi o filho directo destas experiências de laboratório e, por conseguinte, na árvore genealógica de géneros como a House ou o Techno também será possível identificar a paternidade mais ou menos distante do Funk.

Hoje, o Funk vive em estado puro na corrente Nu-Funk e de forma mais ou menos dissimulada dentro das linhas de baixo de muitos dos protagonistas da electrónica ou nos samplers dos produtores de Hip Hop que, com uma espantosa regularidade, vão tomando de assalto os topos das tabelas de vendas. O Funk nunca chegou a desaparecer. Apenas se foi mascarando com as novas roupagens da tecnologia, sabendo existir sob a superfície cromada dos hits dos Neptunes, Fatboy Slim, Metro Area ou LCD Sound System!

FUNKY COMPS


FUNKY COMPS

A pertinência actual do Funk também se mede pela enorme quantidade de grandes compilações que têm chegado ao mercado nos últimos anos. Devido à raridade de muitos dos momentos-chave deste género, tornou-se natural ouvi-los em compilações que quase sempre são apresentadas com enorme cuidado gráfico e documental. Ficam aqui 5 sugestões mais ou menos recentes.


FUNK 45’s (Warner)
Esta é provavelmente a antologia que melhor respondeu aos anseios de coleccionadores, sobretudo aqueles que não têm à sua disposição um orçamento digno de um pequeno estado. Caixa que inclui 10 singles em vinil de sete polegadas, rigorosa do ponto de vista gráfico – reproduzindo fielmente as etiquetas e as capas genéricas de labels como a Cotillion ou a Reprise -, “FUNK 45’s” inclui preciosidades como Sexy Coffee Pot de Tony Alvon & The Bel Aires que, sozinho, vale perto de 500 euros na sua rara edição original.


MIDWEST FUNK – Funk 45’s From Tornado Alley (Jazzman/Now Again)
The Chefs, Dayton Sidewinders, The Soul Toronados, Harvey & The Phenomenals ou Henry Peters & The Imperials... nomes gloriosos, mas esquecidos pelo tempo. Nesta compilação que inclui 23 temas “raros e inéditos”, Jazzman Gerald, da etiqueta britânica Jazzman, manteve a temática geográfica que já havia experimentado em “Texas Funk” para construir uma colecção luxuosa de obscuros clássicos de Funk, gravados na sua maior parte entre 1967 e 1973.


BAY AREA FUNK – Funk and Soul from San Francisco, Oakland and the Bay Area 1967-1976 Vol. 1 (Luv n’ Haight)
O critério é, novamente, geográfico, sublinhando-se assim o facto de em cada zona dos Estados Unidos se ter dado eco à revolução Funk que emanava das gravações do mestre James Brown. Eugene Blacknell (aqui acompanhado por The New Breed) será, provavelmente, o nome mais conhecido desta colecção onde o Funk é a língua franca que une investidas a territórios da Soul mais psicadélica ou até a paisagens mais declaradamente rock.


THE FUNKY 16 CORNERS (Stones Throw)
Editado em 2001, este álbum colocou a fasquia para compilações deste género muito alta. Egon, parceiro de Peanut Butter Wolf na Stones Throw, não se limitou a desenterrar raridades de Funk em sete polegadas, conseguindo nos seus esforços arqueológicos localizar bobines com inéditos que enriquecem esta colecção. The Funky 16 Corners foi recentemente reeditada com um disco extra de remisturas de gente como Cut Chemist, Madlib ou J Rocc.


NEW ORLEANS FUNK (Soul Jazz)
Na complexa equação geográfica do Funk americano, os Meters representam um papel fundamental. O grupo do baterista Zig Modeliste gravou profusamente a solo e como banda de suporte de variadíssimos artistas, como Lee Dorsey. Esta compilação faz-lhes justiça, mostrando todo o alcance da sua conversão ao groove do Funk pela via da típica “second line” de New Orleans mostrando, num alinhamento generoso, nomes tão fundamentais como Eddie Bo, Wild Magnolias, Professor Longhair ou The Gaturs.

Estes textos foram publicados originalmente no Blitz, há um par de meses. No mesmo âmbito foi publicada uma entrevista com Keb Darge que também colocaremos aqui, mas só amanhã!