2/22/2005
FELA KUTI: O PRESIDENTE NEGRO
FELA ANIKULAPO KUTI
Presidente negro
A vida de Fela Anikulapo Kuti revestiu-se de uma tal complexidade que ainda hoje, sete anos após a sua morte, só uma abordagem multidisciplinar concertada permite obter uma visão suficientemente informada da sua monolítica obra. Por isso mesmo, o prestigiado centro cultural Barbican, em Londres, prepara-se para receber a mostra Black President – The Art & Legacy Of Fela Kuti. Com uma generosa oferta de espectáculos ao vivo, palestras, workshops e filmes, Black President desenvolve-se em torno de uma exposição colectiva onde 34 artistas contemporâneos exploram diversas faces do prisma Fela, de ícone sexual a porta-voz libertário de um povo, de herói musical da Nigéria a veículo espiritual de um africanismo moderno.
Inteligentemente, este festival pluridisciplinar entende o mais importante dos factos – que a obra de Fela Kuti continua viva e pertinente por não se desvanecer a abrangente influência que continua a exercer sobre várias gerações de artistas. Por isso, a partir de 2 de Outubro e durante duas semanas, o palco do Barbican Hall receberá um conjunto vasto e eclético de músicos: dos filhos do mestre, Femi e Seun Kuti (este último a liderar a última grande banda do seu pai, os Egypt 80), a gigantes como Roy Ayers e Manu Dibango, passando por Tony Allen com Damon Albarn e Ty e pelo colectivo Red Hot & Riot que recrutou os Yerba Buena, Dead Prez, Keziah Jones e Baaba Mal, entre outros, para alimentar a chama celebratória. Mesmo uma leitura oblíqua do programa, no que aos eventos musicais diz respeito, permitirá concluir que a música de Fela se alastrou para múltiplos territórios, ganhando um carácter global que o gigante nigeriano nunca chegou realmente a conhecer em vida. Não é por isso de estranhar que um gira-disquista como Chief Xcel, membro fundador do colectivo Quannum enquanto parte dos Blackalicious, seja convidado para homem do leme de uma viagem pela obra de Fela Kuti que agora é editada em disco. O sincronismo – que não deve ter nada de acidental e tudo de estratégico – desta edição com o festival do Barbican acrescenta relevância à ideia de que existe uma nova geração preparada para receber os influentes ecos da obra de Fela.
Há meia dúzia de anos, faróis como Gilles Petterson identificavam nos hipnóticos e circulares grooves de discos como Gentleman ou Water No Get Enemy uma séria hipótese de redenção para a música que alimentava os clubes o que levou editoras como a nova-iorquina Spiritual Life a investir esteticamente na redescoberta do Afro-Beat para a pista de dança. Ao mesmo tempo que o House ganhava uma cadência afro, os grandes arquivistas da memória funk descobriam pontos de contacto entre Lagos, na Nigéria, e Macon, na Geórgia, percebendo que havia uma linha directa entre os legados de Fela e James Brown. Assim se entende que uma editora de culto como a Desco (principal responsável pelo revival funk que haveria de dar origem, por exemplo, aos Breakestra) tenha editado os “nigerianos” Daktaris, grupo fictício que mais tarde se revelaria ao mundo com o nome Antibalas. Como as linhas que entrelaçam o colectivo Quannum (DJ Shadow, Blackalicious, Poets of Rhythm…) nas malhas do funk são umbilicais era mesmo só necessário um pequeno esforço para se chegar ao nome de Chief Xcel para misturar a obra de Fela, abrindo-a ao imenso território do Hip Hop. Mas não são apenas as fórmulas de combustão rítmica ensaiadas por Fela que poderão interessar ao Hip Hop. A própria atitude combativa do Black President, explicitamente exposta nas suas letras e dirigida a um regime opressor, toca numa tecla sensível do tecido ideológico do Hip Hop atraindo para a esfera de seguidores da obra de Fela Kuti Black Panthers modernos como os Dead Prez.
Esse espírito de combate fez de Fela o principal inimigo do regime militar, pelo que a repressão da sua música se tornou uma questão de estado, legitimando rusgas aleatórias e espancamentos avulsos. Mas Fela nunca procurou o exílio. Preferiu mesmo refugiar-se na casa da mãe, chamar ao edifício Kalakuta Republic, montar uma cerca de arame e declarar a sua independência do opressor estado nigeriano.
Fela, claro, escolheu o caminho mais difícil. Oriundo de uma família burguesa e liberal, Fela Ransome-Kuti abalou para Londres em 1958, supostamente para estudar Direito, mas com planos secretos para ingressar na Trinity School of Music, onde se dedicou a aprofundar os seus conhecimentos de trompete, o instrumento de eleição dos líderes de orquestras de High Life que tanto admirava. Londres revelou-se ainda mais importante por proporcionar o alargamento dos horizontes de Fela, que passaram a incluir o jazz e particularmente as explorações a território abstracto de um outro trompetista de nome Miles Davis. As poderosas descargas latinas, implosões de exuberância rítmica que se ouviam nos clubes do Soho, também marcaram Fela que não tardou a regressar a Lagos onde, em meados da década de 60, colocou as experiências recém coleccionadas em prática com a criação dos Koola Lobitos.
Em 1969, já com uma rodagem de palcos que incluía países vizinhos da Nigéria como o Ghana, Fela embarcou numa digressão aos Estados Unidos, o que lhe permitiu recolher as peças que faltavam para erguer em definitivo a sua visão – o Afro Beat. Por um lado, contactou directamente com a revolução pelo groove operada por James Brown que nessa altura era provavelmente o artista negro com maior sucesso nos Estados Unidos. Por outro, descobriu o pensamento revolucionário de Malcolm X, a política de elevação racial professada pelos Black Panthers e a filosofia do orgulho negro. Ainda nos Estados Unidos decidiu rebaptizar a sua banda com o nome mais apto Nigeria 70, mas, logo que aterrou em Lagos, com a cabeça a fervilhar de ideias, decidiu-se pela clássica designação de Afrika 70 (que se manteve até aos anos 80 quando mudou o nome do grupo para Egypt 80).
Com o objectivo bem definido de se tornar um orador, Fela procurou um púlpito que viria a estabelecer no primeiro dos seus clubes, o Afrika Spot, que James Brown e os seus músicos visitariam em 1970. Mais tarde, com a arrogância própria de quem possui uma irredutível convicção, Fela acusaria James de lhe roubar o ritmo. Mas isso é apenas um fait-divers na vida de um homem que também não teve pejo em apontar o dedo acusatório a Paul McCartney quando o ex-Beatle decidiu, em 1972, deslocar-se até Lagos para gravar o álbum que viria a ser “Band On The Run”. Reza a lenda que Fela não se conteve nas palavras e acusou Macca de tentar “roubar a música do homem negro.” Claro que fazia tudo parte de uma turbulência interior que crescia de intensidade, tal como a sua música. Fela procurava transformar o mundo à sua volta e para isso precisava de se transformar a si mesmo. Por isso a sua mudança de nome, deixando cair Ransome para adoptar Anikulapo (“aquele que carrega a morte no bolso”) como o seu segundo apelido, teve uma profunda carga simbólica: Fela comunicava a sua metamorfose em progresso a todos os que o conheciam. Lindsay Barrett, a propósito da mudança de nome, escrevia em Março de 98 na Wire que Fela “estava apenas a ser consistente” indicando a mudança como o desejo imperativo que forçava o músico a crescer, transformando tudo à sua volta – a música, a política, a sexualidade, a religião.
Atravessado por profundas contradições, Fela era um feroz defensor da liberdade popular, por oposição ao castrador regime militar, mas, apesar de tamanho progressismo, nunca deixou, por exemplo, de encarar as mulheres como meros objectos de satisfação pessoal, chegando mesmo a encontrar no casamento simultâneo com 27 concubinas a receita ideal para satisfazer o seu lendário apetite sexual. Mais do que indicar algum desiquílibrio em termos de formação, atitudes como a que tinha perante o sexo feminino ou a justificação para-religiosa que encontrou para fumar quantidades industriais de igbo (marijuana) ao mesmo tempo que professava a rectidão e elevação do homem negro enquadravam-se com a sua leitura muito pessoal de um africanismo com espaço para a evolução e modernidade, mas também defensor de tradições como forma de oposição ao mundo exterior de uma Europa colonizadora. A procura de Fela era a de uma identidade forte e marcante. E o uso de igbo tornou-se apenas mais um pretexto para afrontar as autoridades.
Com a criação em 1972 do seu clube definitivo, o Afrika Shrine, Fela encontrou o laboratório ideal para o aperfeiçoamento da sua visão musical. Os espectáculos tornaram-se cerimónias ritualísticas onde Fela veiculava discursos cada vez mais inflamados contra o governo. Os ritmos incessantes comandados pela bateria de Tony Allen, a condução da orquestra com ordens estridentes dadas no teclado, o fumo da igbo, e a mensagem panfletária fizeram do Shrine ponto de passagem obrigatório para os habitantes de Lagos que não tardaram em eleger o seu verdadeiro Black President. Com o tom provocatório a crescer até ao ponto da declaração de independência da sua Kalakuta Republic, as autoridades usaram o pretexto menor do consumo de erva para conduzir buscas violentas ao seu clube e à sua casa que queimaram em 1977 numa rusga levada a cabo por mil soldados que pilharam e violaram impunemente. A razão para tal violência partiu, como quase sempre acontece, do desespero das autoridades que haviam organizado o segundo FESTAC (Festival of Black African Arts) e pretendiam calar Fela para que a sua voz não chegasse aos prestigiados visitantes que estavam para chegar. O efeito obtido foi exactamente o oposto e durante a duração do Festival o Shrine atraía ainda mais gente, recebendo a visita de convidados ilustres como Sun Ra, Stevie Wonder e Gilberto Gil e, claro, da imprensa internacional. No ano seguinte, como vingança pela humilhação internacional motivada pela sua incapacidade de calar Fela, o general Olusegun Obasanjo ordenou mais um ataque cuja violência atingiu a septuagenária mãe de Kuti. Quando Funmilayo Kuti morreu meses mais tarde vítima dos ferimentos causados pelo ataque, Fela organizou uma marcha de protesto, carregando o caixão da sua mãe até à residência oficial do chefe de estado. A experiência viria a dar origem ao álbum “Coffin for Head of State”, em 1981…
Até ao final dos anos 80, os protestos de Fela Anikulapo Kuti só conheceram o caminho ascendente, chegando o músico a propor-se mesmo às eleições de 1983 cujos resultados foram anulados pelo regime militar. Seguiram-se períodos prolongados de prisão, onde os espancamentos eram habituais. Mas os severos castigos impostos ao corpo nunca diminuíram a chama do seu espírito e até bem perto da sua morte, Fela continuou a escrever música crescentemente complexa, com os olhos colocados no racismo à escala global que ainda era capaz de identificar. Todas as sevícias permitiram que a sua doença progredisse rapidamente. Após a morte de Fela Anikulapo Kuti a 2 de Agosto de 1997, a sua família revelou que o músico sofria de Sida e aproveitou a oportunidade para pressionar o governo a reconhecer essa doença como uma calamidade pública. Grande em vida, Fela parecia ser ainda maior após a sua morte: mais de um milhão de pessoas compareceram às cerimónias fúnebres e hoje, certamente um número bem maior, celebra a sua vida através dos muitos discos que gravou. O espantoso na música de Fela que agora se celebra é o facto de possuir uma dimensão sobre-humana, reunindo no espaço de cada canção, o majestoso espírito de África e um universal apelo à elevação da condição do homem. A precisão milimétrica do ritmo, a complexidade dos arranjos, as mensagens que Fela veiculava com uma voz possuída eram sintomas de uma determinação quase sobrenatural – diz-se que transitou para o saxofone pela necessidade de substituir o seu principal saxofonista, Igo Chico, tendo aprendido a dominar o instrumento numa obsessiva sessão de ensaio de 17 horas! Como o homem, a música também nunca se vergou. Nem quando a Motown ofereceu um contrato de 1 milhão de dólares a Fela, no início dos anos 80, procurando no entanto que o autor de “Shuffering and Shmiling” acalmasse a música até uma dimensão compatível com a rádio. Mas a música de Fela era compatível apenas com a própria vida. E por isso tinha que ser maior, cada vez maior. E continua a crescer.
[Fela Kuti The Underground Spiritual Game Mixed by Chief Xcel já está disponível nas lojas. Site de Chief Xcel.
[Uma incrivelmente detalhada e bem ilustrada discografia original de Fela Kuti pode ser consultada aqui.
Texto originalmente publicado no Blitz há alguns meses.