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HitdaBreakz

1/25/2005

DIGGIN' & LIVIN'



Ao preparar uma das entrevistas que, se as respostas não demorarem, será brevemente disponibilizada no HdB V 2.0 que agora podem ver de cara lavada (ao fim de seis meses já se justificava), tive oportunidade de reflectir um pouco sobre esta história do Diggin', sobre as motivações de tal actividade e sobre a sua eventual relevância para o entendimento da música como corpo vivo e actual. É demasiado fácil cair na tentação de pensar que quem se detém demasiado sobre o passado acaba por não perceber o presente ou deixá-lo passar tão rápido que não o apreende. Na verdade, e penso que posso falar tanto por mim como pelo Dub, é a intensa paixão e respeito pelo que agora se produz que nos reconduz inevitavelmente ao passado. Procurar discos marcados por décadas em locais cheios de pó e, se tivermos sorte, alguma história não faria sentido se não existisse um presente que exige ser enquadrado, compreendido e até relativizado. Diggin' in the crates é uma actividade de construção de um mapa pessoal da história da música. Um mapa que, em última análise, permitirá entender de forma mais coerente o presente, ajudando-nos a encontrar o caminho no meio de uma produção actual intensa que muitas vezes se revela labiríntica.
Para o Hip Hop essa actividade é auto-explicativa: tanto Hip Hop se faz de samples que - em significativas vezes - são usados como forma de homenagem a um passado que se redescobre em rodelas de vinil. Samplar é homenagear e encontrar um lugar no fluxo histórico e por isso descobrir um loop usado por Kanye West ou um break reenquadrado por DJ Shadow equivale a compreender um pouco melhor a arquitectura das produções desses artífices dos beats. Mas não é só para o Hip Hop que o Beat Diggin' é relevante. Em última análise, todos os coleccionadores são beat diggers, mesmo se nunca ouviram falar em gira-discos portáteis, nos Skull Snaps ou no Roosevelt Show. Mesmo se preferem a Record Collector à Wax Poetics. Mesmo se os seus holy grails pessoais forem edições originais de Ep's dos Rolling Stones em vez de álbuns de capa verde da KPM. Mas é para a compreensão de praticamente toda a música que vive mais desafogada quando escutada através do sound system de um clube - do house ao drum n' bass, do garage ao R&B e do Hip Hop ao techno - que o Beat Diggin' é de facto fundamental. Lembro-me ainda de descobrir um álbum de Gino Soccio e o In Orbit dos Fania All Stars e ficar chocado por perceber que o House devia tanto a esses momentos. Ou de quando abri o manancial de easy listening e fui percebendo nos discos da Enoch Light Orchestra, de Esquivel e Arthur Lyman, de Gershon Kingsley e Jean Jacques Perrey, nas edições da Command e de Phase 4 e nos incontáveis álbuns de moog-xploitation o quanto gente tão diversa como os Thievery Corporation, Portishead ou Aphex Twin deviam a esses nobres knob-twiddlers que nos seus álbuns abriram o espaço do mono aos novos territórios do stereo, as tecnologias clássicas à emergente electrónica.

Hoje em dia é bem mais difícil manter esta actividade do Beat Diggin' do que há 10 ou 15 anos. E eu que o diga. Lembro-me ainda muito bem, antes ainda da abertura da Lollipop no Bairro Alto (em 93 ou 94...), como era fácil obter funk e jazz porque toda a gente que eu conhecia que coleccionava discos só pegava nos Beatles e nos Stones. Lembro-me de uma época em que era facílimo ir à Feira da Ladra e trazer de lá, por poucos escudos, discos de Jorge Ben, Pierre Henry, George Clinton e James Brown. Lembro-me também de uma ida à feira para servir de cicerone a Mario Caldato jr (o produtor dos Beastie Boys que em 98 esteve em Portugal para produzir a compilação Tejo Beat) que resultou na descoberta de um exemplar precioso de It's My Thing de Marva Whitney - não esqueço a cara espantada de Caldato ao ver ali, por 100 escudos, um disco que já na altura valia 300 dólares no circuito dos diggers americanos. Por tudo isso, já fui confrontado com a pertinência de questões que procuram saber da validade de um blog como o HdB -
porque partilhas conhecimentos? Já é tão difícil encontrar discos e tu ainda vais dando pistas a quem está a começar...
A verdade é simples: pouco importa coleccionar discos se não houver com quem os partilhar. Uma preciosidade, um holy grail de nada vale se só uma pessoa tiver conhecimento dele. O que se faz aqui no HdB nem sequer é novo: Soulman, muito antes de nós, partilhou nas páginas da Rap Pages os conhecimentos que adquiriu no terreno, lançando luz sobre obscuras rodelas de vinil que se mencionavam sempre em murmúrios secretos em pequenas sociedades de iniciados. E Cosmo Baker fez o mesmo nas páginas da On the Go, na coluna Diggin' In the Crates que está agora disponível on line em toda a sua glória original. De certa forma, a atitude do HdB acaba por estar comprometida com um desejo de alargamento de fronteiras, de conquista de novas tropas para a causa do Diggin': só assim poderemos ter um dia uma comunidade com quem fazer trocas, com quem partilhar informações. Seja como for, estamos longe de estar sózinhos nesta "cruzada": os blogs onde outros apaixonados da música expõem escolhas pessoais, avançando pistas para a compreensão de passado, presente e futuro, as comunidades de discussão on-line, os lojistas (da Discolecção e Vinyl Experience de Lisboa, à Muzak do Porto ou à loja do Rui Ferreira em Coimbra), os outros coleccionadores e todas aquelas pessoas com quem nos cruzamos no terreno (concreto ou virtual) têm contribuído para meter Portugal na rota do groove. Essa é a verdadeira relevância do Diggin' e de sites como este: entender que 2005 é, em termos musicais, consequência directa ou indirecta de várias outras décadas que se estendem para o passado, ter prazer na partilha e divulgação das peças do imenso puzzle que se vão descobrindo, aqui ou numa pista de dança. Sujar os dedos em caves poeirentas só faz sentido quando se chega a casa e se colocam os despojos do dia no gira-discos e se liberta aquele glorioso ruído que nos preenche e ilumina. Na capa do Blitz de hoje encontram-se os LCD Sounsystem e lá dentro mencionam-se, a propósito, nomes como Gang of Four, Chic, PiL, MC5, Kraftwerk ou Herbie Hancock. Isso é diggin' in the crates!
Agora, venham de lá essas trocas, porque é preciso manter o fluxo!