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HitdaBreakz

11/11/2004

PSYCH ROCK 101



Foto por Inge Weidmann

Existe, em mim, a forte convicção de que entender um estilo musical só é possível se entendermos tudo o que o circunda. E quando digo circunda, digo o que o fez surgir, porque surgiu, como surgiu e para onde foi. A música é, para mim, sempre, reflexo da sociedade de onde é emanada. Não acho possível haver uma dissociação completa entre a sociedade e a música - até quando a música funciona como contrapeso da sociedade (como em tantos fenómenos contraculturais em que a música é ponto pivotal, como o punk ou o hiphop), a sociedade é argumento para essa forma de contracultura traduzida em sons. No entanto, nem sempre estamos atentos a esta ligação entre as questões sociais e a música, principalmente quando o nosso principal alimento musical é a música do nosso quotidiano, como acontece com a maioria das pessoas que ouve música. E tem razão de ser : não há ninguém que compreenda melhor uma sociedade do que os seus membros. Não precisamos de grandes lições de viver na década de 90, todos nós passámos por ela, sabemos, mais ou menos, o que aconteceu.

Mas vamos a uns quantos exemplos. Só podemos entender na sua totalidade a obra de José Afonso quando enquadrarmos historicamente o resultado da sua arte. Só se consegue perceber a força do Grândola Vila Morena e quem é que "come tudo e não deixa nada" ou a quem se refere Zeca quando diz que "o pintor morreu" (em A morte saiu à rua, uma das minhas canções preferidas de sempre de Zeca Afonso, que podem encontrar no álbum Eu vou ser como a toupeira) ou quem é o "soldadinho que não volta do outro lado do mar" (em Menina dos olhos tristes, disponível em vinil apenas em single, pelo que sei) se entendermos o défice democrático e de liberdade por que Portugal passou durante o Estado Novo e a guerra colonial. E sabemos que a música na Alemanha de hoje reflecte, sem dúvida nenhuma, a quebra do muro de Berlim e a consequente união das antigas República Federal Alemã e a República Democrática Alemã. As diferentes formas de vida que estiveram separadas por um muro, puderam, após a queda, entrar em confronto e equilibrar-se. Musicalmente, essa interinfluência é patente em muitas formas e estilos que a Alemanha tem vindo a liderar, casos das editoras Compost e Kompakt, só para dar exemplos bem bem diferentes. Outro exemplo em plena Europa pode ser encontrado no post que escrevi mais abaixo relacionado com a Muza (editora polaca).

O rock psicadélico não foge a esta regra. Para entendermos o que levou bandas como os Grateful Dead a fazer a música perfeitamente distante dos paradigmas normais instituídos, só se entendermos o complexo social que existia em São Francisco na altura e na qual os Grateful Dead (e não só, mas falo nos Grateful porque são uma banda sobejamente conhecida por todos) se reviam. E é neste espírito de enquadramento que vou abordar, ao longo dos tempos aqui no blog, diferentes partes desse complexo social.



Quando falamos de rock psicadélico, temos de falar do movimento hippie. E quando falamos do movimento hippie, temos de falar de Haight-Ashbury. Haight-Ashbury mais não é do que uma zona de São Francisco onde se cruzam a Rua Haight e a Avenida Ashbury. No entanto, mais do que um cruzamento de ruas, o que aquela esquina representa é um cruzamento de sociedades. Ali respirava-se de maneira diferente dos restantes lados. Era aqui que se concentravam os hippies, motivados pelos baixos preços das rendas nas (belíssimas!) casas victorianas da zona, casas essas tão comuns em São Francisco. Ali, o célebre "paz e amor" patente no protesto à guerra do Vietname e a respectiva consciência política do movimento hippie era vivido em pleno. Mas não era só na vertente activista que se reflectia o movimento hippie já que, para além da consciência política, existe também a consciência psicadélica, patente no uso de LSD, e nos efeitos que tal uso teve para quem o tomou. Allen Cohen, editor da revista underground San Francisco Oracle e activista hippie, vai mais longe e refere que "enquanto sociedade, temos vindo a compreender os anos 60 como resistência política à guerra e ignorado as mudanças em valores e cultura que a experiência psicadélica trouxe". Pegando nesta citação e enquadrando-a no que nos interessa (a música), temos tendência a concordar já que é inegável a influência do LSD no rock psicadélico. E tal influência reflecte-se não só por ser a droga usada por quem faz rock psicadélico (os Charlatans, por exemplo, foram uma das primeiras bandas de rock psicadélico e tocavam sob o efeito do LSD, aspecto em que foram "imitados" por incontáveis outras bandas) e por quem ouve. Relembro os leitores de que o consumo de LSD foi ilegalizado apenas a 6 de Outubro de 1966, tendo acontecido, antes dessa ilegalização, imensos acid tests, "festas" onde os organizadores (entre eles, as bandeiras do movimento hippie, os Merry Pranksters e o seu líder, Ken Kesey), tentando espalhar o consumo da droga que, alegavam, abria as portas da percepção.

No entanto, tenho que referir que esta única atribuição ao LSD das características mais inatas do rock psicadélico não é totalmente correcta. São Francisco é tudo menos uma cidade apenas virada para o rock. Nos anos 40 e 50, uma emergente cena jazz floresce no distrito de Fillmore e tem o seu ponto de encontro no Jimbo's Bob City, um local mítico para se ouvir e tocar jazz. Presenças como Coltrane, Charlie Parker, Dexter Gordon, Duke Ellington ou Louis Armstrong são habituais, tudo nomes que, a esta distância temporal e com o respectivo amadurecer das obras, tendemos a considerar génios. A excelente música que se ouvia no Jimbo's Bob City atraiu os escritores beat (Kerouac e Ginsberg eram assíduos) que, por sua vez, atrairam outros fãs musicais. Muitos deles não eram fãs musicais quaisquer, eram apenas e só a base de futuros nomes lendários do rock psicadélico, como Jerry Garcia, Phil Lesh e Bob Weir (todos eles dos Grateful Dead), Janis Joplin (dos Big Brother and the Holding e, depois, uma diva a solo), Carlos Santana, Jack Cassidy (dos Jefferson Airplane) e muitos outros. Desta forma simples (e basta às vezes um único sítio para o fazer...), toda uma geração de afficionados do rock foram influenciados pela improvisação e liberdade que (só) o jazz permitia daquela forma.

[continua]