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HitdaBreakz

11/28/2004

NORTHERN SOUL




Influenciados que foram pela cena Northern Soul, onde discos de soul americanos destinados a serem dançados eram tocados em festas no norte de Inglaterra, nos anos 60 e 70, num circuito formado pelas cidades de, significativamente, Wigan, Stoke ou Blackpool (festas essas com bastantes exímios dançarinos, com um sentimento incrível em relação à música... sendo o maior exemplo disso o célebre momento do filme Pretty in Pink em que Jon Cryer está na loja de discos com a Molly Ringwald e está a tocar o Try a little tenderness, na versão do Otis Redding e ele começa a dançar o tema como só quem sente a música consegue... memorável!), os ingleses são, hoje, dos maiores consumidores de funk de todo o mundo. Só assim se compreende porque é que há tantas noites de funk em Inglaterra, tanto dj de funk e tanta editora de funk, seja edições originais seja reedições de pérolas antigas.

O Northern Soul tem este nome não porque seja, como muita gente pensa, soul feito no norte de Inglaterra (ou mesmo dos Estados Unidos). Nada disso. O Northern Soul é o nome usado, não para definir um género musical, mas antes para definir os discos que eram tocados em clubes de música soul situados no norte de Inglaterra. Um disco passava a ser um disco northern soul se fosse considerado capaz de elevar o público que ia dançar aos eventos para dançar e, por isso mesmo, fosse repetidamente tocado nesses eventos. Estes eventos eram imensamente importantes e nomes como The Twisted Wheel, Blackpool Mecca ou Wigan Casino estão, na cultura da música de dança do Reino Unido, ao lado de nomes como o Hacienda ou Ministry of Sound.


Entrada do Wigan Casino, em Wigan, um dos mais importantes clubes de northern soul

É por esta razão que não se pode considerar o northern soul um género musical mas antes uma cena (os fãs mais aguerridos defendem que é um movimento). Não há critérios sólidos, como habitualmente, para distinguir o que é um disco northern soul e o que não é um disco northern soul. É a comunidade que participa na pista de dança que, ao aplaudir um disco ou ao o vaiar, o torna northern soul ou não. É a pista que faz um disco ser parte do género, não o jornalista, não o dj, não o autor do tema, nada disso. É uma das grandes particularidades do Northern Soul e talvez aquela que a torna uma cena tão interessante.

Não era qualquer disco de soul que era um disco de Northern Soul. Tinham de ter um certo groove e um ritmo mais rápido do que os habituais discos de soul, permitindo um enorme equilíbrio entre o sentimento na voz e a capacidade de nos fazer mexer os pés. Grande exemplo do que é um grande disco de northern soul, para usar um exemplo que a maioria de vocês conhece, é o Tainted Love da Gloria Jones, um desconhecido disco de soul editado em 1964, recuperado pelos djs de Northern Soul e tocado muitas muitas vezes nas noites em que actuavam. Posteriormente, este tema foi imortalizado pelos Soft Cell. Foi nas noites Northern Soul que muitos destes jovens, posteriores artistas de renome, tomaram contacto com o mundo da soul e o incorporaram, primeiro na sua cultura musical, depois na sua arte. É interessante fazer a ponte entre a soul e muita da pop inglesa que aconteceu nos anos 80 e 90, apenas e só pelo prisma das noites Northern Soul.


Pista de dança do Wigan Casino

Mas não era só o groove e o ritmo que distinguiam os discos de Northern Soul. Havia uma certa áurea de mistério nos discos que eram tocados. Ao início não era bem assim mas, com a constante necessidade de encontrar "novos sons", os djs deixaram de tocar discos conhecidos pelo mainstream. A maioria dos temas tocados eram temas desconhecidos pelo público que os ia ouvir, lados B de singles, edições em promo nunca editadas por grandes editoras ou temas de soul de editoras independentes dos Estados Unidos, coladas, na sua grande maioria, ao som Motown. E era a qualidade da música, apenas e só a qualidade da música que era tocada, que tocava as pessoas. Ia-se a um clube de northern soul sem fazer a menor ideia do que se ia ouvir ou ia-se para se ouvir coisas que só no clube de northern soul se ouvia. Como é diferente o nosso habitual público de música de dança agora... onde a grande maioria vai a uma discoteca para ouvir os mesmos temas que ouvem em casa ou na rádio ou na televisão, no spot publicitário da moda

(e até podemos exagerar e dizer que "como é diferente o nosso habitual público de música... onde a grande maioria vai a um festival para ouvir a banda da moda tocar o tema do spot publicitário da moda...)

E, por isso, por causa dessa paixão pela música que os djs tocavam, na Northern Soul, os melhores djs eram idolatrados. Foi, a par do que acontecia com os djs de house (como Larry Levan ou Frankie Knuckles) do outro lado do oceano, dos poucos sítios no mundo onde o dj era idolatrado como uma estrela rock (passe o exagero). Eram os djs que levavam as pessoas. E eram os discos que faziam os djs. O que separava um bom e um mau dj não era a arte de misturar, como muita gente (e erradamente, na minha perspectiva, mas isto já é outra conversa) tende a considerar. O que separava um bom de um mau era o facto de o bom ter todos os discos que o mau dj tinha mais os discos que o mau dj não tinha nem nunca iria ter. Havia, assim, uma constante luta entre djs para encontrar sons novos, para procurar coisas que a) funcionassem na pista b) fossem raras c) mais ninguém soubesse o que era. E era esta exclusividade, esta luta pelo melhor disco que levou a que muitos djs ingleses fizessem verdadeiras excursões aos Estados Unidos, afinal de contas, a sede original do soul, para fazer diggin', na esperança de encontrar nos Estados Unidos aqueles discos que continham 3 minutos de música que nunca ninguém tinha ouvido em Inglaterra e que pusesse toda a gente a dançar. Ou seja, mais ou menos o que acontece hoje com a música de dança só que sem a parte do diggin' em discos velhos (porque hoje, os djs fazem diggin' em discos novos, entre outras pequenas diferenças).

E isto tudo para dizer que é por causa deste espírito de diggin', este constante procurar por parte dos djs ingleses de discos obscuros de soul para satisfazer os interesses daqueles que dançavam nas pistas todos os fins de semana que se pode entender porque é que o funk é tão grande no Reino Unido. Como é óbvio, o facto de se procurarem discos de soul para fazer dançar nos leva a associar sempre o funk à parte do dançar. Mas não se pense que o funk e a soul para ser dançada se confundem. Nem por sombras! É que a soul contém algo em que o funk (salvo algumas excepções) não é pródigo: letras e conteúdo nas letras. O funk é eminentemente instrumental, é a banda que transporta o som e o ritmo, é a banda que leva, através do som e do ritmo, as pessoas a dançar. Se quiserem, o típico vocalista de funk mais não é do que um percursor dos originais MCs de hiphop oldschool, incitando o público a dançar, usando a palavra para o ritmo, já não tanto para a mensagem. Coisa diferente, como bem sabemos, é a soul, onde a voz, mais do que transmitir uma mensagem, transmite sentimento. A soul é a arte de conjugar aquilo que sentimos e aquilo que dizemos.