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HitdaBreakz

11/30/2004

BRUCE LEE EM VINIL



O universo das bandas sonoras de filmes de Bruce Lee é, no mínimo, difuso. As edições originais da japonesa Tam, de acesso difícil, têm vindo a ser intensamente pirateadas na Europa e Estados Unidos e só assim é possível ter acesso a alguma da música de filmes como The Big Boss, Tower of Death ou Fist of Fury. Acrescente-se a essas dificuldades as intrincadas diferenças entre as versões ocidentais e orientais dos filmes e respectivas bandas sonoras, a música gravada propositadamente para os discos e não incluída nos filmes, os excertos de diálogo no meio dos temas ou a baixíssima qualidade das gravações e facilmente se perceberá que entrar no universo musical do dragão é mais complicado do que parece.

Mas uma vez localizadas, as rodelas de vinil com Bruce Lee na capa oferecem imensos momentos de prazer. Na edição (bootleg, obviamente) de Tower of Death (a sequela duvidosa de Game of Death, já de si um filme duvidoso, uma vez que Bruce faleceu sem o completar sendo substituído na versão final por três duplos) encontra-se a fabulosa frase “Kung fu is the art of self defense. I’m not interested in killing, i just wanna see how bad your kicks are” que melómanos mais atentos reconhecerão do tema His name is… dos franco-japoneses United Future Organization (com a linha de baixo retirada de The Human Fly, um dos temas compostos por Lalo Schifrin para a banda sonora de Enter The Dragon). Aliás, uma das coisas que a audição destes álbuns revela é uma enorme fonte de temas usados através do sampling em muita música recente (os Dilated Peoples, por exemplo, samplaram a banda sonora de The Big Boss da autoria de Joseph Koo e Wang Fu Ling). O que diz muito do impacto que o mundo das artes marciais, e particularmente o ícone Bruce Lee, teve em algumas correntes musicais recentes, como é o caso do Hip Hop. Aliás, o facto dos filmes de Kung Fu apresentarem quase sempre um herói de nobreza elevada e espírito decidido a lutar contra o mundo das forças do mal serviu de inspiração ao carácter combativo de muitos protagonistas do Hip Hop, como foi o caso bem documentado dos Wu-Tang Clan, Afu-Ra ou dos franceses IAM, por exemplo. O ângulo aproveitado por estes artistas terá sido mais o do imaginário deste tipo de filmes, aproveitando os códigos de honra neles explorados para erguer à força de palavras e imagens um metafórico mundo de heróis e vilões que reflecte, obviamente, a realidade actual. De resto, não deixa de ser sintomático que RZA, o produtor dos Wu-Tang, se tenha envolvido nas bandas sonoras dos filmes Ghost Dog de Jim Jarmusch e, mais recentemente, Kill Bill de Quentin Tarantino.

Como no caso dos anti-heróis da Blaxploitation, os filmes de Bruce Lee ofereciam escape a diversos níveis. A tendência universalista destes filmes passava pela imposição de um herói com fisionomia não ocidental, que respeitava códigos arcanos de honra e dever, que fazia justiça pelas suas próprias mãos. Um homem só contra o mundo, contra a opressão… Não havia como não estabelecer laços com estes filmes. Mas para lá das mensagens – quase sempre óbvias e de um moralismo pesado – havia a magia dos gestos, das intrincadas coreografias de combate e o carisma imenso de Bruce Lee. O Pequeno Dragão, como também era conhecido, ajudou a retirar as artes marciais dos cinemas de Hong Kong onde, quase sempre, a acção se desenrolava numa época indistinta da China antiga. Injectou-lhes modernidade e por isso mesmo depressa sentiu o apelo de Hollywood. Com a Blaxploitation provou-se que os êxitos de bilheteira não tinham que ser baseados em banais histórias de amor, com actores brancos, realizadores brancos, histórias brancas. Daí que o potencial de Bruce não tenha passado despercebido aos produtores americanos. Mas o que é particular e diferenciável em Bruce Lee é a sua vincada personalidade, pouco compatível com os rumos que lhe queriam traçar. Dono do seu próprio destino, Bruce rapidamente pegou nos velhos códigos de Kung Fu para erguer um estilo próprio a que chamou Jeet Kune Do. Este seu espírito rebelde tocou fundo no subconsciente de alguns mavericks de Hollywood, como James Coburn, Steve McQueen ou Lee Marvin (três verdadeiros “maus” da indústria cinematográfica americana), que receberam aulas de Bruce. O que queriam eles apanhar? A graça, o espírito de combate, a capacidade de transformar músculos em armas letais, o escape à norma.

Voltando às bandas sonoras que continham a música que traduzia nas pautas o espírito das lutas apresentadas nos filmes, há que dizer que exceptuando talvez a versão europeia de Game of Death da autoria do grande John Barry, a única que realmente vale a pena por razões exclusivamente musicais é Enter The Dragon, do genial Lalo Schifrin. Há momentos nos outros discos (como o tema de abertura de The Big Boss da dupla Koo/Ling, embora a maioria sirva mais o propósito dos completistas ou arquivistas de samples do que propriamente o melómano tradicional), mas Enter the Dragon é consistentemente interessante do início ao fim. Schifrin, um experimentado compositor de música para cinema (Missão Impossível ou Bullit são dois dos seus scores mais imediatamente reconhecíveis), lançou-se na escrita desta partitura amparado pelas experiências de funk orquestral dos filmes de Blaxploitation, mas conseguiu insuflar oriente, drama, tensão e fisicalidade na sua visão musical. O resultado é um brilhante álbum de Big Band Funk, repleto de espaços de respiração, com “stabs” dramáticos que tornam possível a projecção na mente dos combates de Bruce no grande ecrã.
Para os que desejem entrar rapidamente neste universo, há uma série de propostas em DVD disponíveis através de sites como o Amazon, incluindo uma caixa que reúne o essencial da obra de Bruce Lee. Mas se as insónias vos assaltam frequentemente, não há como esperar, porque uma noite destas, num dos canais de filmes por cabo, hão-de cruzar-se com Enter The Dragon… Depois não se esqueçam de procurar a banda sonora.
Publicado originalmente na revista Umbigo.