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HitdaBreakz

10/27/2004

SEGUNDA VIDA




Isto de andar no digging tem muito que se lhe diga. Há pouco tempo, escrevi aqui sobre as compilações Dusty Fingers e acho que é dos nomes mais acertados para descrever o digging. É que fazer diggin sem ficar com os dedos (fingers) sujos (dusty) e com cheiro a mofo, sentir o cabelo sujo de vinte anos de pó, sair de casa com as calças azuis e chegar a casa com as calças cinzentas (mas com mais 100 discos para a colecção) é sinal de que estivémos a fazer o que gostamos mais: digging. É que isto já ultrapassa o normal, não é apenas a busca pela música, é também a busca que dá gozo. Mas não só. O digging é também uma escola, uma formação musical inigualável. O facto de ter de ouvir esses 100 discos que trouxe para casa, o facto de ter de os limpar, de olhar para as labels, de ler os nomes do staff que trabalhou no disco permite-me utilizar essa informação para, noutras saídas para digging, mais facilmente reconhecer, em discos de que nunca ouvi falar, nomes que me são familiares e sinónimos de coisas de que gosto. "Olha, está aqui o Leroy Burgess, isto tem hipóteses... olha, o Dennis Coffey na guitarra! isto não deve ser mau..." e por aí fora.

Assim, podemos dizer que o digging é a procura de música mas também uma lição de música. Lição essa que não se limita a nomes, como pode, à primeira vista parecer com o que escrevi atrás. Mas leiam melhor: eu falei em "ouvir esses 100 discos". Ouvir 100 discos (coisa nada incomum quando voltamos a casa após dedilhar uma colecção inteira) faz com que tomemos contacto com 100 pedaços de música diferentes um dos outros. 100 discos é muito disco, não é possível ouvi-los todos com a mesma atenção. Como é óbvio, damos uma vista de olhos (de ouvidos?) pelos discos, demorando-nos mais em discos que nos soem melhor e despachando rapidamente para a secção das "trocas" (discos para trocar com outros diggers) aqueles que nada nos dizem. E é aqui que entra a nossa sensibilidade musical, o facto de sermos capazes de ouvir algo que não está em nenhum chart, que não está na moda (experimentem ouvir kraut ou rock psicadélico dos anos 70 no século XXI... há poucas referências no mundo da música actual com o que ali está em concreto), que ninguém (ou quase ninguém) conhece e dizer: "este disco é bom" ou "este disco é mau". És tu e o disco. Não há críticas ao disco por A, B ou C no jornal X, P, T ou O, não há referências para além das que tu tens de coisas semelhantes, não há nada. E é essa a beleza do digging, fazer com que entres em contacto com discos que de outra forma nunca ouvirias. Alguma vez iria descobrir a Big Band Katowice se não fosse pelo digging? Alguma vez ouviria falar dos Droids se não tivesse arranjado o disco pelo digging? Alguma vez seria capaz de dar o devido valor aos cânticos dos monges tibetanos se não andasse atrás da editora Nonesuch? Alguma vez saberia a história do casamento da Wilma com o Karl se não fosse pelo disco editado por ocasião do casamento deles e que eu arranjei pelo digging (não vale nada o disco... esqueçam-no se o encontrarem, foi o que eu fiz com a minha cópia).

Mas nem assim estamos perante uma definição absoluta do que é, para mim, o digging. É que nem tudo é tão objectivo como possa parecer no digging: ir à loja, encontra o disco, ouvir o disco, procurar referências, achar bom ou mau. O digging é muito mais do que este exercício mecânico de encontrar música para ouvir, é mais do que ficar sujo com o pó dos outros, é mais do que procurar nomes nas contracapas. Diz o DJ Shadow, no filme Scratch, que fazer digging é uma experiência que nos torna mais humildes, e tem toda a razão. Cada disco editado contém os sonhos das pessoas que o fizeram, as suas ambições e amarguras, os seus desejos de sucesso ou as suas experiências enquanto seres humanos. Ao encontrar esses discos, 20, 30 anos depois, o que estamos a fazer é reabrir essa porta, é fazer renascer esse sonho. O que estamos, na realidade a fazer, já pouco tem a ver com a busca, com a música ou com a nossa própria formação, muito menos com o nosso entendimento sobre o que é boa ou má música. O que estamos realmente a fazer é a dar uma segunda vida a sonhos passados.