8/27/2004
BREAK DA SEMANA TM : TOWER OF POWER - MAHDI, THE EXPECTED ONE
Um disco numa editora como a Blue Thumb é sempre uma surpresa, tal era a diversidade de gente que gravava para a Blue Thumb (desde o Captain Beefheart ao Phil Upchurch, desde o Gabor Szabo à dupla Ike and Tina Turner, passando até pelos Doors após a morte de Jim Morrison, banda a que os membros sobreviventes chamaram Butt Band).
E este mantém a tradição. Na capa, que podem ver em cima, encontramos um senhor de barba e cabelo comprido e com aspecto marreca à frente de uma mesa de mistura de uma rádio. Atrás dele, Júpiter e Saturno e uma linha de horizonte que se supõe ser São Francisco à noite, já que o título do álbum é "Lights Out: San Francisco". Por baixo, descobrimos o nome do senhor, chama-se Voco e é seu propósito apresentar a "soul of the Bay Area". Não tenho aqui a minha câmara digital mas gostava que vissem o interior do disco (é um gatefold - uma capa de LP que abre como se fosse um livro e que, neste caso, contém um texto no interior) - lá dentro temos Voco e a sua namorada, que, como Voco, é radialista para uma rádio de divulgação de música não-comercial muito importante desta altura (estamos a falar do início dos anos 70) , a KSAN. Ela chama-se Dusty Street e tem aquele aspecto angélicohippie como só as meninas dos anos 70 de São Francisco têm.
Mas o que é que um programa de rádio tem a ver com um disco duplo na Blue Thumb? A resposta tem de ser encontrada no passado de Abe "Voco" Keshishian (já verifiquei no disco e nem assim acho que acertei a escrever o apelido). É que Voco, para além de ser o importante divulgador musical que foi (principalmente na área dos blues), sempre teve o bichinho do estúdio, produzindo uma série de álbuns, como staff producer ou como produtor independente. Foi ele, por exemplo, que "apadrinhou" a entrada dos Blue Cheer na música a sério. E é com este bichinho que aparece este álbum. Diz Voco : "Durante anos andei atrás das editoras para gravar um álbum conceptual intitulado Lights Out mas a resposta era sempre a mesma - os álbuns conceptuais não vendem nada porque não os podemos tocar ao vivo - o que traduzido para linguagem não-capitalista significa 'não somos donos de quem toca no álbum'. Mas, graças à Blue Thumb e a Tommy LiPuma e Bob Krasnow [os donos da editora], vou poder fazê-lo".
O álbum é duplo e é indicativo do que era o programa de rádio de Voco. Se quiserem, podemos dizer que Voco era um Gilles Peterson dos anos 70 - passava desde música clássica a música electrónica, jazz ocidental e oriental, pop e muitos blues ("from B.B. King's Hold that train, conductor into Richard Strauss' Also Sprach Zarathustra into Bufallo Springfield's Broken Arrow"). Nele, encontramos faixas incríveis de gente tão diversa como os Tower of Power (que em quatro temas fazem de Lights Out um seu mini-álbum apenas disponível aqui, já que nunca nenhum destes temas foi tocado num álbum deles ou sequer passível de ser encontrado numa sua colectânea, em vinil ou em CD), Fadil Shahin, as Pointer Sisters, Linda Tillery, Lydia Pense, Clifford Coulter ou John Lee Hooker (assessoriado por Neal Schon).
Deixo-vos aqui alguns excerptos de temas do álbum para que o possam apreciar o suficiente para tentarem procurar um exemplar. Os comentários aos temas são feitos pelo próprio Voco.
John Lee Hooker - Lights Out [audio]
"O tema que abre o álbum, Lights Out, é o tema título e a minha primeira tentativa para escrever uma letra. O que Lee Hooker canta é o que eu digo quando entro no ar todos os sábados à meia noite na KSAN... É meia noite, luzes desligadas, roupa despida, velas acesas, incenso a dispersar-se, não precisamos de electricidade, eu vou ser o amplificador porque nós conseguimos dançar no escuro". A secção rítmica é funk puro, com o sincopar certo e calmo de Geno Skaggs [baixista]. Neal Schon (com 18 anos) já é um dos mais importantes novos guitarristas que apareceu nestes anos. A sua maneira de tocar é uma experiência linda. Alguns de vocês, melómanos mais dedicados, devem-se lembrar dele enquanto Bo Duddley. Ele toca actualmente na banda Loading Zone [a banda também da Linda Tillery]. O tema foi gravado num take com John Lee Hooker conduzindo, cantando, tocando e compondo."
Sylvester and his Hot band - Hey that's no way to say goodbye [audio]
"Hey that's no way to say goodbye [do Leonard Cohen] e o tema seguinte, Why was I born? [que conta com a participação das Pointer Sisters], marca a estreia discográfica de Sylvester and His Hot Band. As suas actuações ao vivo são lendárias para quem teve a sorte de o ter visto na Bay Area e, também, em Nova Iorque. Foi a Dusty Street que nos apresentou. Tendo ouvido a sua voz num spot de 30 segundos na KSAN e depois poder ver como ele é gracioso e belo enquanto artista, não me contive e convidei-o para fazer alguns temas para o meu álbum. Ter aceite o meu convite foi um momento muito feliz para mim. (...) Enquanto escrevo isto, Sylvester está a juntar material para o seu primeiro álbum, que eu vou ter a sorte de produzir, para a Blue Thumb. Neste tema, podemos ouvir novamente o brilhante jovem guitarrista Neal Schon."
Tenho de fazer um comentário aqui. Este Sylvester é o Sylvester, o grande artista que explodiu na cena disco com hits como You make me feel (mighty real), que conta com a participação do enorme Patrick Cowley e que é um dos singles crossovers entre o italo e o disco. É igualmente vocalista de um tema, muito conhecido na cena disco, do Herbie Hancock (o "Magic Number").
BREAK DA SEMANA TM : TOWER OF POWER - MAHDI, THE EXPECTED ONE [audio]
E agora o break. O break é fabuloso, está no início do tema "Mahdi, the expected one", que era outro nome pelo qual Voco era conhecido, este mais a condizer com o aspecto místico que Voco apresenta nas fotos que estão no álbum. O tema foi composto na noite anterior à gravação pelos Tower of Power. Quem toca o break é um dos bateristas mais negligenciados de toda a cena funk, o Dave Garibaldi. O homem é um colosso e basta ouvir os álbuns dos Tower of Power para perceber a intensidade com que ele encara os pedaços de pele que tem à frente. E para quem, mesmo assim, tem dúvidas, é favor clickar no link em cima e presenciar um dos melhores breaks que tenho na minha colecção.
Por curiosidade apenas, quando arranjarem o disco, irão notar que, na parte de trás da capa, o nome Tower of Power está tapado por um autocolante. Isto aconteceu porque quando o disco ia sair, os Tower of Power tinham acabado de assinar um contrato discográfico com a Warner e esta foi a maneira encontrada para resolver o imbróglio jurídico em que as lutas de editoras são férteis.
nota : todos os links com a palavra [audio] à frente contêm um pequeno sample em mp3 da
música de que se está a falar nesse link