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HitdaBreakz

7/27/2004

O "DJ" ANTES DO "SHADOW"


Basta perguntar a qualquer pessoa minimamente ligada ao digging quem é o maior digger e a resposta costuma ser uma : DJ Shadow. O Cut Chemist (dos Jurassic 5), já com o devido desconto de ser grande amigo do Shadow, considera-o, no filme "Scratch", o "king of digging", o rei. O que fará um puto ser o rei quando tantos outros andam no reino há tanto tempo e com colecções maiores? A resposta também costuma ser uma, uma característica que não se aprende, que não se conquista e muito menos se consegue transmitir : bom gosto. E este bom gosto é bem evidente não só nos discos que sampla mas também nos discos que mostra, não só enquanto dj mas também enquanto divulgador. Recentemente, num dos Worldwide do Gilles Peterson, foi possível ouvir o DJ Shadow a mostrar, pelo simples prazer de mostrar discos, coisas desconhecidas como Christy Essiens num tão incógnito quanto maravilhoso tema chamado "Rumours" [audio] (numa editora nigeriana chamada Afrodisia, pela qual também Fela Kuti editou). Noutro programa de rádio, mistura vários 45 rotações de garage rock dos anos 60, de bandas pouco conhecidas até para quem conhece por dentro o garage rock dos anos 60, esse monstro devorador de bandas que só tocavam para amigos e editavam um single ou dois.

Mas os mais evidentes exemplos do gosto do DJ Shadow, para além dos álbuns, são três dj sets gravados para disco, sendo dois deles em parceria com Cut Chemist : o Brainfreeze, o Product Placement e o Diminishing Returns. Os três sets são bons exemplos daquela regra silenciosa dos diggers : nenhum deles tem tracklisting, nem informação nenhuma sobre o que está a tocar, compete aos diggers descobrirem o que está a tocar, principalmente os temas que lhes tocam mais a eles. E há tantos temas ali que a mim me tocam, coisas como o "Cosmic Sea" [audio] dos Mystic Moods (que tenho na minha colecção, herdado dos meus pais - o único disco funk no meio de vários Amálias e Zeca Afonsos); ou o "Hey Joyce" do Lou Courtney, música que foi imortalizada no léxico hiphop pelo Large Professor dos Main Source ["He got so much soul (he don't need no music)" [audio] do álbum "Breakin Atoms" (Wild Pitch, 1991)]; ou os quase celestiais sons do "Mount Airy Groove" [audio] dos Pieces of a Dream; ou o "Sunrise" [audio] dos ingleses CCS, que abre o disco psych do Diminishing Returns - em todos estes sets, DJ Shadow deixa um cunho bem pessoal daquilo que ele entende ser "boa música". É também nestes mixes que nos lembramos que existe um "DJ" antes do "Shadow".  É que a maioria olha só para DJ Shadow enquanto produtor, esquecendo que ele nunca deixou de ser dj.  Por isso, vamos olhar para DJ Shadow, neste post, enquanto dj, falando dos três sets que ele oficialmente editou em disco. 

O Brainfreeze e o Product Placement podem ser considerados sets quase irmãos. Foram ambos vendidos nos shows da dupla, têm ambos a mesma estrutura, já que são compostos por duas faixas, são ambos limitados e giram os dois à volta de 45 rotações anunciando produtos para venda. O Brainfreeze mistura apenas funk 45s (com três ou quatro excepções, entre elasl o "Numbers" dos Kraftwerk mas se Afrika Bambataa vê funk nos Kraftwerk...) com break clássico atrás de break clássico atrás de break clássico e revolve à volta de um 45 rotações da cadeia 7-Eleven chamado "Dance the slurp". Nele, ambos os DJs evitam os excessos de scratchs em que muitos djs de hiphop facilmente caem e deixam a música falar por si. No Product Placement, a selecção musical é mais abrangente e vai de modo mais evidente denunciar a total palette de gostos de ambos os djs. Isto é patente não só num maior número de faixas de hiphop dos anos 80 ou de electro da mesma década mas também com um maior destaque ao rock. No entanto, nunca o set se esquece do papel principal que a soul e o funk têm. E qual é o produto anunciado no Product Placement? Para dizer a verdade, são vários: há um que explica às pessoas como é bom cozinhar com gás (butano, provavelmente), há outro que diz como é bom beber leite e por último, e quanto a mim o principal, um anúncio à Coca Cola com o slogan "It's the real thing". Tenho uma opinião bem diferente desta, já que acho que, por ser mais abrangente musicalmente e por conter mais coisas menos óbvias, o set do Product Placement é mais rico que o Brainfreeze. 


Por último, o Diminishing Returns, o set a solo de DJ Shadow. Dividido por 2 CDs, acaba por ser uma quase ruptura em relação aos outros dois sets. Enquanto os dois primeiros são um CD dividido por duas faixas, este são dois CDs com uma faixa cada; enquanto que os dois primeiros são manifestamente sets de funk e soul, este tem um disco quase exclusivamente com hiphop dos anos 80 e um outro com apenas rock psicadélico e derivados. Continua é a ter prensagens muito pequenas (fala-se em 1000 cópias para o mundo inteiro). O Diminishing Returns só podia ser adquirido no site do DJ Shadow e vinha numa bolsinha transparente com dois pisa-copos e alguns autocolantes, pelo preço de 15 dólares. Nem uns dias depois, e numa repetição do que aconteceu com os Brainfreeze e com os Product Placement originais, as regras da oferta e da procura entraram em acção e packs Diminishing Returns eram vendidos a um preço médio de 100 e poucos dólares (ainda hoje esse preço médio não é irrealista).  Mas isto é folclore comparado com o que lá vem dentro: não só temos uma pequena antologia de hiphop menos conhecido e de grande qualidade como também temos uma mistura de temas raríssimos de rock psicadélico, rock cristão (xian rock) e garage rock, misturados de forma irrepreensível.  Aliás, ambos os sets do Diminishing Returns são cuidadosamente misturados e demonstram toda a técnica do DJ Shadow a manipular os pratos, perfeitamente evidente no set de psych em que consegue fazer passagens extremamente fluídas entre músicas que à partida não foram feitas para serem misturadas.  E, como cereja no topo do bolo, um original do Shadow, chamado "War is hell".

Depois de ouvir os sets do Brainfreeze e do Product Placement, fica sempre a mágoa de aqui em Portugal não termos tido a felicidade de ver nenhum dos sets ao vivo.  Para minorar este aspecto, existem dois DVDs chamados Freeze e Product Placement On Tour, onde é possível ver ambos os sets a serem tocados conforme estão destinados a serem tocados: para um público. E para quem não quer gastar uma pequena fortuna na compra dos originais em CD, há também a possibilidade de adquirir bootlegs dos três sets, a preços bem mais acessíveis que os originais. Só que nada bate o sabor original, pois não?

nota : todos os links com a palavra [audio] à frente contêm um pequeno sample em mp3 da música de que se está a falar nesse link.