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HitdaBreakz

7/26/2004

DIGGIN': SAY WHAT?...


Este texto já tem uns anos e foi publicado num dos primeiros números da revista Op, mas continua a ajudar a explicar muito bem o que é isto do Beat Diggin'. Rui Miguel Abreu é o autor.

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Beat diggin’ 4 life!!!

Um armazém. Toneladas de rodelas de vinil esquecidas pelo tempo e apagadas pela poeira. Um homem com uma missão equipado com um gira-discos portátil e um conhecimento enciclopédico da História da música gravada. Como pistas, uma lista infindável de nomes e referências cruzadas – editoras, produtores, músicos de sessão, palavras-chave – armazenadas na memória. E, claro, uma paciência sem limites alimentada a adrenalina pura descarregada quando uma luzinha se acende por via de uma das tais referências cruzadas que aparece impressa na etiqueta de uma aquelas rodelas de vinil que nunca se tem a certeza se existe, mas que quando aparece dá enquadramento à fé pessoal de que ainda há vida naqueles pedaços de plástico. Isto é beat digging, beat mining ou "arqueologia sonora" para todos os que fazem da procura de discos uma actividade norteadora da sua forma de expressão musical.

Os beat diggers são, geralmente, produtores ou DJ’s (ou ambos...). Nos Estados Unidos movimentam-se, essencialmente, no grande território do hip hop, mas na Europa, todos os produtores que usam o sampling como paleta sonora nas suas criações musicais são, em graus diferentes, beat diggers convictos. De ambos os lados do oceano, procura-se matéria prima para insuflar nas criações próprias. Breakbeats, principalmente. Mas também arranjos orquestrais, pianos, saxofones, enfim, todos os instrumentos que possam ganhar um novo sentido quando inseridos num contexto renovado, pensado pelo produtor. Quando Mark Rae usa um tema de Claude Denjean gravado em 1974 para a Phase 4 para construir um tema juntamente com Mr. Scruff, isso é o resultado de um apurado faro no que à actividade do beat digging diz respeito.
Nomes históricos da mitologia do hip hop como Afrika Bambaataa e Grandmaster Flash são os pioneiros do beat digging. Antes de o hip hop se ter encontrado com a sua própria denominação, o que existia eram festas ilegais no Bronx onde o melhor DJ era o que conseguia prolongar por mais tempo o fluxo de breakbeats (conseguido através do uso de duas cópias do mesmo disco) dando assim aos B-Boys o combustível rítmico necessário para alimentar as suas acrobacias. Com o tempo, esses breakbeats começaram a servir de base para as primeiras produções, lançando-se aí o dogma do sampling – ao samplar, o produtor reforça a linha de continuidade da música negra, homenageia as suas raízes e, ao mesmo tempo, sublinha os seus skills de beat digger ao recuperar para o presente temas obscuros. O hip hop consegue assim a incrível dicotomia de ser, a um tempo, uma música de rua com um sentido profundamente académico.

Os produtores e DJ’s tornaram-se os verdadeiros arquivistas da história da música negra sendo o seu conhecimento dos movimentos estéticos, dos protagonistas de cada escola e do output das editoras respectivas superior ao dos próprios músicos envolvidos na gest(aç)ão dos géneros que alimentaram essas edições. E graças a esse conhecimento profundo da memória musical impressa em vinil, o produtor/DJ tem influído de forma decisiva nas voltas e reviravoltas do segmento de mercado mais voltado para a música dita de dança. "Correntes" que têm recuperado tipologias como o jazz, o triângulo lounge/easy listening/exotica, o funk, o reggae ou, entre outras coisas, a "library music" devem tudo à curiosidade crónica dos beat diggers que na sua procura incessante do breakbeat perfeito têm explorado todos os géneros recuperando do esquecimento nomes obscuros e dando-lhes uma nova vida através do sampler ou dos pratos de gira-discos.

Quem afirma de ânimo leve que não existe talento na manipulação de um sampler deveria estar preparado para delimitar essa observação. Tal como Arto Lindsay não aborda a guitarra da mesma maneira que, digamos, Keith Richards, um produtor como DJ Shadow não tem, obviamente, uma atitude face ao sampling semelhante à de alguém como os Thievery Corporation. O sampler é uma espécie de organismo vivo que, com o tempo, acaba por apreender a personalidade do seu manipulador e tornar-se quase uma extensão do seu pensamento artístico. Por isso mesmo, eu diria que não existe talento na manipulação de um sampler quando basicamente se usa esse instrumento para construir um loop com base num dos milhares de Sample CD’s disponíveis do mercado. Trata-se de CD’s que já trazem sons cortados, alinhados, limpinhos e prontos a entrar na linha de montagem. Comprar um destes CD’s para construir música não é muito diferente de comprar uma caixa com um puzzle já montado. Não só é um pouco "desonesto" como expõe quem opta por essa via à eventualidade de outro programador preguiçoso que comprou o mesmo CD-de-sons-para-samplar estar a fazer uma música idêntica. E talvez por aí se comece a perceber porque é que realmente não existem tantas diferenças como isso entre os Tosca e um dos seus incontáveis clones...

No extremo oposto, está, claro, o beat digger inteligente. O que mergulha em cada Remar, Feira da Ladra, loja de segunda mão, o que analisa com olho clínico os anúncios da Ocasião dispondo-se depois a passar uma tarde em casa de uma senhora velhinha que já não encontra utilidade para os discos do seu falecido marido. O que faz tudo isso para procurar o disco certo com selo da Phase 4, o álbum onde Fausto Pappetti assina uma versão de "Love Theme" de Barry White, o single de Ravi Shankar que tocado na rotação errada nos ensina o que é o trip hop ou que não teme a ameaça velada de apelidos como Kaempfert, Last, Montenegro ou Mauriat. Desses discos nascem obras-primas. Todos os dias...