8/08/2004
FUNK ON!
Fica aqui outro texto de RMA com um par de anos. Foi originalmente publicado na Dance Club.
FUNK ON!
O funk é a fundação, ponto final. De tudo. Seria até a fundação da democracia moderna se os gregos não se tivessem armado em espertos lá no Parthenon. Porque no funk parece não haver hierarquias entre os instrumentos: a bateria é crucial, mas também o groove ondulado do baixo, as marcações da guitarra, a cor do Hammond ou a alma do saxofone. Oiço agora vozes lá no fundo a questionarem se o funk não está morto... Não. Non. No. Nein!... De maneira nenhuma. De facto, o funk nunca esteve tão vivo e de tão boa saúde: há uma cena entusiasmada que atravessa o Atlântico e tem ecos bem sonoros na Europa. Uma cena que se apoia em grupos, editoras, coleccionadores.
O passado
Mas para contar a história do funk de maneira correcta há que recuar um pouco no tempo. O Rhythm n’ blues deu origem a pelo menos três géneros distintos: o rock and roll, a soul music e o funk. O primeiro colocou o ênfase na energia das guitarras, o segundo sublinhou a importância da voz e a sua transparência de sentimentos... O funk, porém, nasceu diferente. Em primeiro lugar porque conseguiu que todos os instrumentos dentro da banda trabalhassem para um mesmo objectivo: a imposição do groove. O funk assumiu desde o início uma vocação mais primal, animal, sexual até... Afinal de contas o termo funk deriva de uma designação em calão para o odor de uma parte específica da anatomia feminina. Adiante…
O grande arquitecto do funk chama-se James Brown. Na capa de “Endtroducing” DJ Shadow foi mesmo mais longe e chamou-lhe “o inventor de toda a música moderna”. Na verdade, como produtor, músico e até voz de uma geração, James Brown revelou-se um génio e elevou a condição do funk, insuflando-lhe alguma da sofisticação do jazz e até algum conteúdo através das suas letras de cariz social (“say it loud, i’m black and i’m proud”). E fez tudo isto sem nunca perder de vista a funcionalidade do funk na pista de dança, onde tinha originalmente nascido, quando os músicos aceleraram o tempo do Rhythm n’ blues.
Os primeiros DJ’s de Hip Hop e até de Disco compreenderam muito bem o poder da música de James Brown, usando-a para gerir a tensão na pista de dança. No caso particular dos DJ’s de Hip Hop, o funk em geral e os discos de James Brown em particular serviram para, através da combinação de duas cópias do mesmo registo, prolongar o efeito do “break”, alongando-o até à exaustão. A combinação da batida fornecida pelo DJ, com as palavras do mestre de cerimónias levou à criação do Hip Hop, que desde o início baseava a sua razão de ser num dogma: o recurso a extractos alheios de música para a criação do seu próprio som.
O HIP HOP
Ao longo dos anos, o Hip Hop fez muito pela permanência do funk (e de outros géneros como o Jazz: catálogos como a Blue Note devem o seu regresso à abundância de samples no mundo do hip hop. Uma frase publicitária dizia “You gotta hear Blue Note to dig Def Jam”...) na ordem do dia, através do sampling. Os produtores de hip hop percorreram os quatro cantos dos Estados Unidos e desenterraram todas as peças obscuras de funk que havia para desenterrar, criando um mercado de preços elevadíssimos para o que eles chamam “untapped samples”, ou seja, samples nunca antes usados. Por causa disso, James Brown reclamou para si com justiça o título de “artista mais samplado” ao ponto de num dos discos do início dos anos 90 ter sido obrigado a gritar “I’m Real”... Porque corria o risco de se tornar apenas numa memória preservada num banco de samples.
RENASCIMENTO DO FUNK
Seja como for, através do Hip Hop, as malhas intrincadas do funk nunca desapareceram. É por isso lícito dizer que o Hip Hop nasceu das mãos de uma geração que tinha crescido a ouvir funk. E o funk renasceu através de uma geração que tinha crescido a ouvir Hip Hop. Para muita gente, encontrar o break originalmente usado pelos De La Soul ou Public Enemy tornou-se quase uma obsessão. No fundo, estas pessoas procuravam a sua própria identidade, ao partirem em busca das fundações do Hip Hop. Destes verdadeiros arqueólogos, sempre em busca do “sample” perdido, nasceu uma alargada e dinâmica comunidade de “funk collectors” nos Estados Unidos e na Europa. Alguns, de tanto procurarem edições obscuras de funk, geralmente em singles de sete polegadas, criaram editoras especializadas na reedição desses discos. Outros começaram a organizar compilações ou a escrever, documentando assim as suas demandas. E houve até os que começaram a fazer música, como foi o caso de DJ Shadow.
Há um par de anos, Shadow e Cut Chemist dos Jurassic 5 decidiram levar um pouco mais longe o conceito de “turntablist” e apresentaram em São Francisco um show que consistia na mistura e manipulação exclusiva de Funk 45s (os tais discos de funk de sete polegadas). No dia anterior à apresentação do show, Shadow e Cut tinham gravado um ensaio e foi a essa gravação que deram o nome de “Brainfreeze”, fazendo uma edição limitada de 2 mil exemplares para venderem em espectáculos. De repente, tudo rebentou: os CDs originais de “Brainfreeze” conseguiam preços astronómicos em sites de leilões na Internet e um grupo de devotos fãs procurava coleccionar todos os Funk 45s originais presentes na sessão imaginada por Shadow e Cut Chemist. Foi a loucura, com “dealers” nos Estados Unidos a verem os preços dessas pequenas rodelas de plástico negro alcançarem preços muito altos, na zona das muitas centenas de dólares, por vezes até mais de mil dólares. Tudo isto por discos com dois temas, muitas vezes gravados por uma banda obscura à saída do liceu numa qualquer pequena cidade do Texas, limitado a poucas centenas de exemplares. Muitas dessas bandas ou acabavam imediatamente ou gravavam apenas mais um ou dois singles. O que fazia desses objectos, peças extremamente raras e valiosas.
NU-FUNK
Nestes círculos de coleccionadores, como era inevitável, havia alguns músicos. Educados no funk através dos samples dos discos de hip hop que tanto amavam, muitos destes músicos decidiram dar o passo seguinte e passar à edição. Na Bay Área (zona da Califórnia de onde são oriundos DJ Shadow, os Jurassic 5 ou Blackalicious)
apareceu Miles Tackett, multi-instrumentista produtor de hip hop e responsável, por exemplo, pelo som da excelente MC T-Love. Miles tinha uma visão e criou um conceito: uma orquestra para reproduzir fielmente os excertos que se tinha habituado a ouvir samplados nos discos de Hip Hop. Nasceram assim os Breakestra, um incrível colectivo que descobriu que era um passo muito simples que os separava da criação dos seus próprios futuros clássicos. Através da Stones Throw de Peanut Butter Wolf editaram já alguns originais. Aliás, a Stones Throw é ela própria casa de um par de coleccionadores inveterados, além de Wolf há o seu sócio Egon, e por isso não são de estranhar as constantes edições de monumentos funk, destacando-se do lote a compilação sobre-excelente “Funky 16 Corners” ou a recente caixa de singles de 7 polegadas “Soul 7”.
Já antes disso, em Nova Iorque, dois franceses expatriados criavam a Desco, editora muito sui-generis. Os discos que editavam, invariavelmente de funk, eram apresentados como edições de finais dos anos 60 ou inícios dos anos 70 e as gravações feitas em velho material analógico numa tentativa de reter o som sujo que caracteriza o funk. Edições pioneiras de gente como Lee Fields, Sugarman Three ou The Daktaris (os Antibalas com outro nome) fizeram da Desco uma etiqueta de culto.
Os dois sócios, Phillip Lehman e Gabriel Roth, começaram em Paris, no fim dos anos 80, por fazer compilações de velhas pérolas funk que editaram, mesmo sem autorizações, na Pure Records. A mudança para Nova Iorque foi pensada para os colocar mais próximos da música que tanto admiravam.
Finda a aventura Desco, ambos formaram novas editoras: Gabriel Roth criou a Daptone e Phillip Lehman a Soul Fire, ambas apostadas em reedições legítimas e em novos projectos. Um dos discos editados o ano passado pela Soul Fire foi assinado pelos Whitefield Brothers e é uma poderosa lição de funk contemporâneo. Os Whitefield Brothers também respondem pelo nome de Poets of Rhythm.
POETAS DO RITMO
É verdade. Para os que pensavam que Munique, na Alemanha, era só cerveja e salcichas, eis os Poets of Rhythm. Apaixonados por funk desde que começaram a ouvir Hip Hop, Jan e Max Whitefield editaram o seu primeiro Funk 45 no já distante ano de 1992. Mas só há dois anos é que chegaram a uma editora maior, a Ninja Tune, através da sua ligação à Quannum de DJ Shadow e Blackalicious (o mundo parece que dá voltas não é?), apaixonados pelo grupo precisamente desde que descobriram os primeiros singles que eles editaram na Alemanha.
Com a edição de “Discern/Define” (Ninja Tune, 2001) e “In The Raw” (como Whitefield Brothers, na Soul Fire, 2002), este colectivo trouxe o funk para o século XXI injectando-lhe modernidade e invenção, através de arranjos bem libertadores, que os colocam na primeira linha deste renascimento do funk.
Além dos já citados Sugarman Three (agora a editarem na Daptone), dos Poets of Rhythm/Whitefield Brothers e dos Breakestra há a assinalar a extremamente activa cena inglesa, com grupos como os Soul Destroyers de Malcom Catto (coleccionador reputado e artista solo da Mo Wax), os New Mastersounds (que editaram na BBE) ou um novamente activo e pertinente James Taylor (procurem os seus singles na Blow It Hard). Com o impulso de Keb Darge (DJ que já esteve entre nós), normalmente visto como o padrinho de toda esta cena de Funk, o panorama em Inglaterra é entusiasmente. Além de pôr música em alguns clubes como o Deep Funk, Keb Darge é o mais respeitado coleccionador do mundo e compilador veterano. As suas compilações de “Deep Funk” para a BBE são históricas, assim como as que organizou para a mesma editora com a ajuda de gente como DJ Shadow ou Pete Rock de título “Funk Spectrum”. Ou seja, um coleccionador de velhos discos de Funk e dois produtores de Hip Hop. A história completa-se!